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Voluntariado depois dos 55 anos

Publicado a
22/1/2021

Há coisas que ficam adormecidas durante um longo tempo dentro de nós, como que à espera da altura certa para se manifestarem e, de repente, surgem, revestidas de um sentimento de urgência difícil de explicar e entender.

Foi isso que me aconteceu com o voluntariado, como uma vontade urgente de fazer algo para ajudar o outro, mas também de me pôr à prova e me desafiar para lá do conhecido.

Na verdade, a vontade esteve sempre lá. Há muitos anos, eram os meus 3 filhos pequenos, tive pela primeira vez a oportunidade de experimentar fazer voluntariado com crianças em situação de abandono ou risco, acolhidas na Casa do Caminho, em Matosinhos. Estava na altura numa situação de transição entre um trabalho e outro, e dei-me a possibilidade de viver essa experiência durante alguns meses.

Percebi aí, pela primeira vez, a importância do compromisso no trabalho voluntário. Quando te propões fazer algo pelo Outro, tens que ter bem presente que o Outro conta contigo, que não o abandonas à primeira dificuldade, nem à segunda, nem à terceira. E quando se trata de crianças, essa responsabilidade é ainda maior.

Ana com uma das crianças da Família que acompanha no âmbito do projeto MEERU Aproxima.

Muitos anos passaram, e há cerca de 5 anos, vi-me de repente em casa, após mais de 30 anos de trabalho, e sem nada para fazer. Esta não foi uma realidade que me caiu em cima, sem escolha, como acontece a tantas pessoas com mais de 50 anos. Foi uma oportunidade que surgiu e que eu decidi agarrar, porque senti que estava na hora de parar e repensar o que eu queria que fosse a minha vida a partir dali. Há muito que a cultura das grandes empresas se tinha tornado cada vez mais difícil de suportar, mais distanciada daquilo que eu era, e mais difícil de silenciar essa divergência dentro de mim.

Os meus filhos estavam orientados e capazes de serem autónomos (o mais velho já tinha casado há alguns anos) e eu senti que já não tinha que ter essa carga em cima.

Agora era eu, comigo! E não foi fácil! As perguntas incómodas surgem sem resposta, o sentimento de vazio preenche muitos dos dias, e percebemos que há tanto tempo que não nos ouvíamos… E foi neste contexto que um dia, essa urgência surgiu, primeiro devagarinho, falando baixinho, depois ensurdecedora, gritando: É AGORA!

Candidatei-me para fazer voluntariado internacional em Cabo Verde*, durante 1 mês, aos 55 anos, sozinha, sem experiência de viajar para lá de algumas cidades em Espanha, Paris e Londres. Respirei fundo, convencida que não iriam aceitar alguém com a minha idade…, mas a resposta chegou passados 2 dias: ACEITE!

E assim começou esta “viagem”! Foi o primeiro desafio bem longe de casa, uma cultura diferente, onde precisei de pôr a minha capacidade de adaptação à prova, mas foi sem dúvida, uma prova superada! Compreendi mais uma coisa tão importante no voluntariado: humildade. Quando estás verdadeiramente para o Outro, não te podes pôr num patamar acima, nem num patamar abaixo. Estás lá, para dares o teu melhor, mas não és tu que defines o que o Outro precisa. Só precisas de saber ouvir, e perceber que a tua “sabedoria” pode não valer de nada, se não tiveres a disponibilidade para estar para o Outro.

Trouxe tanto de lá, mas talvez o que perdura mais forte até hoje, são os abraços, os melhores e mais sentidos abraços que recebi até hoje. Deixei tanto cá, mas naqueles dias, nada nem ninguém me fez falta, porque estive ali inteira.

Quando regressei, tive necessidade de digerir tudo, e fazer outras coisas que estavam igualmente em lista de espera há muitos anos, antes de regressar ao voluntariado.

Precisei me desafiar de novo, ganhar autoconfiança, superar medos, de ter espaço para estar comigo, a sós, de perceber, de forma literal, que o primeiro passo é sempre o mais difícil, mas é sempre o começo de tudo!

Decidi fazer o caminho de Santiago, sozinha. Inventei todas as desculpas para não ir, e tive que as ir eliminando uma a uma. Não me esqueço do primeiro passo que dei, e do turbilhão de sentimentos nesse momento. Essa lembrança continua a ser-me muito útil hoje em dia. E sim, fiz todo o caminho, e cheguei a Santiago de Compostela, inteira por fora, mas sobretudo, inteira por dentro.

Nos anos seguintes, dediquei-me a analisar com calma alguns projetos e associações que trabalham em várias áreas. A pouco e pouco, fui fazendo contactos, entrevistas, e fui iniciando o meu percurso de voluntariado de proximidade.

Hoje, quase a completar os 60 anos, sou voluntária em 3 associações que me têm proporcionado experiências imensamente ricas do ponto de vista humano, e através das quais tenho conhecido pessoas com um coração gigante, e uma enorme capacidade de fazer acontecer. E a minha admiração por cada uma não para de crescer!

Animais de Rua — Associação que se dedica fundamentalmente à esterilização de animais de rua. Neste momento faço parte do projeto AR+CA (parceria com a associação CASA) que apoia com alimentação e cuidados veterinários os animais que estão ao cuidado de famílias carenciadas ou sem abrigo, para além dos cabazes de alimentação para as próprias famílias.

Ana numa iniciativa do projeto AR+CA.

Movimento Transformers — Movimento que tem como finalidade aumentar os índices de participação cívica da população, através da partilha do que cada um mais gosta de fazer (super-poder) com grupos de alunos do 3º ciclo, mas também de crianças em idade pré-escolar e grupos de seniores em situação de isolamento. Faço parte atualmente de uma equipa que se encontra a acompanhar um grupo de incríveis avós transformers, desafiando-as com atividades improváveis. Este ano já fizemos sabonetes e desinfetante para um kit anti-covid, yoga, ilustrações, e kickboxing, e muito ainda nos espera! O confinamento obriga-nos a nos reinventarmos todos os dias para as proteger, mas nunca as largarmos. Por isso, estas semanas elas estão em casa, dedicadas a confecionar e ilustrar receitas que farão parte de um livro de receitas das avós. E não podiam estar mais entusiasmadas!

Ana numa aula de kickboxing com o Movimento Transformers.

Nos dois anos anteriores tinha tido um desafio e tanto! Ensinar uma avó de 82 anos a ler! A vida nunca lhe tinha dado a oportunidade de aprender, mas a vontade continuava lá. A “minha” avó Emília, com quem passei tantas e tantas horas de volta do abecedário, e dos números, mas também das confidências, das conversas sobre tudo e sobre nada, da vida passada e dos sonhos futuros. Sim, a avó Emília continua a sonhar, e sou eu que aprendo afinal, todos os dias que estou com ela.

A MEERU — o meu mais recente desafio, e que desafio! Apoiar famílias migrantes e refugiadas, que se encontram a viver em Portugal. Quando me tentava colocar na pele de quem passava por uma situação como esta, e imaginava todos os momentos de desespero, incerteza e sofrimento pelo qual teriam passado e continuariam a passar, sentia que tinha que dar o meu contributo. E a MEERU, como tantas coisas boas que me aconteceram na vida, apareceu-me à frente dos meus olhos, no tempo certo, quando todas as experiências anteriores já me tinham feito amadurecer o suficiente para poder integrar este novo desafio.

Faço parte de uma Equipa que dá apoio de proximidade a uma família síria, composta pela mãe (viúva, com 32 anos) e três filhos com 2, 3 e 4 anos. Procuramos ser um abraço amigo, às vezes um colo, às vezes uma ponte, um suporte, ajudando na integração e na autonomização desta família. Debatemo-nos todos os dias com dificuldades, aprendemos a lidar com a frustração de querer fazer mais e não poder. Mas acima de tudo, estamos juntos, e somos também família.

Se sou feliz? Tenho imensos momentos de felicidade, mas também muitos de intranquilidade. Assim é a vida!

Sei que é este o caminho, e continuo a querer ir cada vez mais longe, cada vez mais fundo. Olho para trás, nos tempos em que fazia parte da “máquina”, e sinto o quanto aprendi nos últimos anos. E sou tão agradecida por cada momento que passei!

Como mãe, sinto também a responsabilidade de ser exemplo. Cada um importa e há sempre alguma coisa que podemos fazer pelo Outro, é preciso termos sempre bem presente o que realmente conta.

Se sou feliz? Estou no MEU caminho, e por isso sim, estou feliz!

*Associação Delta Cultura (Tarrafal, Ilha de Santiago) — Apoia a educação não-formal de crianças e adolescentes desfavorecidas, através da oportunidade de explorarem e desenvolverem as suas potencialidades e gostos, experimentando várias atividades à sua escolha, desde artes, informática, música, ou integrando uma das várias equipas da escola futebol, de acordo com a sua faixa etária.

Testemunho da Ana Leite, Voluntária Aproxima

Autores
Ana Leite
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