37 organizações da sociedade civil, incluindo a MEERU | Abrir Caminho, assinaram uma carta aberta dirigida ao Ministro da Presidência, à Ministra da Administração Interna e ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, apelando a medidas e políticas dignas, justas e eficazes, de acolhimento, integração e inclusão de migrantes.
Esta carta aberta sublinha incoerências na implementação de políticas migratórias, apontando como fatores agravantes o foco na securitização das migrações, o crescimento de discursos de ódio e anti-imigração e as possíveis contradições do novo Pacto da União Europeia sobre Migração e Asilo.
Carta Aberta
Janeiro de 2025
Ao cuidado:
Ministro da Presidência, Ministra da Administração Interna e Ministro dos Negócios Estrangeiros
O enfoque na securitização das migrações, em detrimento do desenvolvimento e dos Direitos Humanos, o crescimento do discurso de ódio e anti-imigração nos países europeus e as possíveis incoerências do novo Pacto da UE sobre Migração e Asilo são algumas das preocupações que nos levam a dirigir a presente carta, reconhecendo que persistem incoerências na implementação de políticas de migração que tenham por base uma abordagem de Direitos Humanos, onde a centralidade das Pessoas nas políticas públicas e nos processos de desenvolvimento é ativamente defendida.
Para potenciar as interligações positivas entre migrações e desenvolvimento, são fundamentais políticas públicas coerentes e articuladas, entre vários setores e intervenientes. Particularmente, medidas concretas e políticas equilibradas e eficazes de acolhimento, integração e inclusão, que permitam às pessoas migrantes realizarem plenamente o seu potencial, que protejam os seus direitos humanos e liberdades fundamentais, independentemente do seu estatuto migratório, que garantam a não discriminação a todos os níveis e criem condições para a igualdade de direitos e deveres, que empoderem os migrantes e estimulem o seu contributo ativo para um desenvolvimento inclusivo e sustentado, nos países de acolhimento e de origem. Só assim será possível mobilizar todos os cidadãos –nacionais e migrantes – para a construção de um futuro comum, no qual todos/as tenham o seu lugar, papel e valor intrínseco.
Assim, apelamos:
1. À IMPORTÂNCIA DE UMA COMPREENSÃO APROFUNDADA DOS FACTOS PARA DESCONSTRUIR MITOS FREQUENTEMENTE ASSOCIADOS ÀS MIGRAÇÕES, E PARA BASEAR AS POLÍTICAS PÚBLICAS.
Por exemplo, existe uma relação direta entre a taxa desemprego e a economia como fatores reguladores da emigração e imigração, independentemente do estatuto documental dos migrantes. Outro exemplo é o impacto económico muito positivo dos imigrantes. É essencial que estes factos sejam constantemente atualizados e divulgados de forma acessível, promovendo uma colaboração mais estreita com investigadores e entidades que trabalham com dados sobre migrações. Os factos concretos devem contribuir e ser um dos pilares da tomada de decisão política.
2. À RELEVÂNCIA DE HUMANIZAR A ABORDAGEM ÀS MIGRAÇÕES, COLOCANDO SEMPRE O FOCO NOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS,
falando de pessoas migrantes e não apenas de fluxos, números ou percentagens, e colocando o enfoque nas suas necessidades e vulnerabilidades, ao invés de priorizar interesses económicos e desafios burocráticos. É crucial que a proteção dos direitos humanos seja garantida desde o primeiro contacto do migrante com o sistema de acolhimento, assegurando um tratamento digno e equitativo. Não podemos esquecer que a luta pela liberdade (de ser, de viver com dignidade, de ter emprego e criar condições melhores para si e para as suas famílias) é um aspeto basilar dos movimentos populacionais. Os valores da dignidade humana são, assim, essenciais para um verdadeiro acolhimento, integração e inclusão. A instrumentalização das pessoas migrantes para fins políticos, económicos ou outros é inaceitável, assim como a instrumentalização da ajuda ao desenvolvimento para fins de gestão migratória. A erradicação da pobreza e o combate às desigualdades devem permanecer como o seu objetivo central. É necessário monitorizar a implementação e os potenciais efeitos incoerentes do Pacto Europeu de Migração e Asilo e continuar a defender, nas instâncias europeias, um sistema europeu comum de asilo assente na solidariedade e na responsabilidade partilhada, justo, equitativo.
3. À NECESSIDADE DE AVALIAR OS IMPACTOS DAS RECENTES ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS NA CRIAÇÃO DE NOVOS DESAFIOS PARA OS IMIGRANTES QUE JÁ SE ENCONTRAM EM PORTUGAL;
bem como nos próprios objetivos da política migratória, tendo em conta a possibilidade de aumentarem a migração ilegal e a exposição às redes de tráfico humano e tomando medidas para antecipar e colmatar esses potenciais efeitos.
É igualmente necessário garantir que a regularização documental, apesar de importante, não se sobreponha ao acolhimento e proteção imediata dos migrantes mais vulneráveis. Priorizar o apoio humano e o acesso a serviços básicos deve ser o primeiro passo, antes da burocratização excessiva. As possibilidades de regularização das pessoas, após a entrada em Portugal, são limitadas e a entrada regular só é viável com uma rede consular que funcione plenamente, pelo que seria importante apoiar e acelerar os processos consulares nos países de origem. É também crucial investir em esforços de informação e sensibilização para aqueles que partem rumo a Portugal, conforme sugerido pelo Pacto Global para as Migrações e pelo Plano Nacional de Implementação deste Pacto. Além disso, é preciso existir resposta para a frequente situação de vulnerabilidade dos imigrantes emPortugal que enfrentam dificuldades para se regularizarem, uma vez que muitos não possuem vínculos ao seu país de origem ou condições financeiras para retornar.
Os acordos de mobilidade, como o criado no âmbito da CPLP, e que devem ser objeto de análise e avaliação, pois têm impactos concretos na vida das pessoas.Por um lado, verificam-se dificuldades na empregabilidade de pessoas detentoras de Autorizações de Residência CPLP(ARCPLP), uma vez que muitas empresas, por desconhecimento ou insegurança quanto à validade e imprevisibilidade desse documento, têm recusado a sua contratação, agravando ainda mais a sua vulnerabilidade.
Por outro lado, deveria analisar-se os efeitos do chamado Título CPLP onde, sem garantias de meios de subsistência, muitos imigrantes não têm acesso aos sistemas de apoio social, que já se encontram em rotura. Além disso, continua-se a receber pessoas sem as condições adequadas de acolhimento, o que aumenta as situações de exploração laboral, tráfico humano e outras situações de abuso e redes que levam estrangeiros a outros países da União Europeia. É fundamental assegurar a sustentabilidade e a capacidade de acolhimento dos sistemas de apoio, para evitar que se entre numa espiral de autodestruição, onde a pressão sobre os recursos sociais gera mais vulnerabilidade e exploração. Só através de uma abordagem sustentável, que fortaleça progressivamente as estruturas de acolhimento e integração laboral, será possível criar uma espiral virtuosa, capaz de aumentar continuamente a nossa capacidade de receber e integrar migrantes, de forma digna e eficaz.Assim, poderemos acolher de acordo com a nossa máxima capacidade real, sem levar à rotura as estruturas de acolhimento e integração, colmatar devidamente as necessidades e continuar a receber e integrar de forma eficaz e sustentável, evitando perpetuar erros.
4. À NECESSIDADE DE RESPONDER AOS PROBLEMAS CONCRETOS DAS PESSOAS MIGRANTES EM PORTUGAL, CONSIDERANDO QUE A SITUAÇÃO DE FRAGILIDADE DAQUELES QUE RESIDEM EM PORTUGAL ESTÁ A CRESCER EM VÁRIAS VERTENTES.
Entre as questões abordadas, salienta-se:
— O ALOJAMENTO E HABITAÇÃO - Verifica-se uma dificuldade na gestão e disponibilidade de vagas de acolhimento de emergência e/ou temporário, pois não existe capacidade de resposta suficiente para pessoas em situação de extrema vulnerabilidade que solicitam essa ajuda temporária para alojamento (através da Linha Nacional de Emergência Social ou então pelos serviços da Ação Social das Autarquias). Além disso, são conhecidas as dificuldades no setor da habitação, que se agudizam no caso das pessoas migrantes, por vezes alvo de práticas ilegais e de condições habitacionais indignas. Um dos resultados é também um aumento significativo de pessoas em situação de sem-abrigo, com tendência a agravar-se. Para mitigar esta crise habitacional, recomenda-se a criação de uma estrutura de emergência que permita o acompanhamento e apoio necessário às pessoas migrantes e refugiadas, principalmente as que estejam em situação de sem-abrigo, despejo ou precariedade habitacional, articulando-se com as entidades sociais já existentes. É também essencial que se garanta um investimento contínuo e sustentável em habitação acessível, tanto para os migrantes como para a população em geral, de forma a prevenira repetição destes ciclos de exclusão habitacional.
— A FALTA DE APOIO LEGAL E ACOMPANHAMENTO, AGRAVADA PELA BUROCRACIA. Nomeadamente, a existência de muitas dificuldades de comunicação com a AIMA é um problema que precisa ser abordado, não só num momento de urgência, mas de forma sustentável, criando estruturas de monitorização que garantam o cumprimento dos direitos sociais dos migrantes, com atenção especial aos grupos em maior vulnerabilidade social. Estas estruturas de apoio devem também ser dotadas de recursos suficientes para prestar um acompanhamento contínuo, minimizando as dificuldades burocráticas e garantindo que os migrantes tenham acesso a serviços essenciais sem atrasos ou discriminação, como garantir que os processos de reagrupamento familiar não sejam prejudicados por barreiras burocráticas ou económicas.
— A BARREIRA LINGUÍSTICA enfrentada pelos imigrantes, evidenciando a necessidade urgente de promover o ensino da língua portuguesa, tendo em atenção o retrocesso na oferta de cursos de Português Língua de Acolhimento (PLA), que compromete a integração e o acolhimento. Deve ser assegurada uma oferta contínua e acessível de cursos de língua portuguesa, especialmente para os grupos mais vulneráveis
— A NECESSIDADE DE REVISÃO DOS ACORDOS DE SAÚDE para a evacuação de pessoas doentes para Portugal. O apoio que as pessoas doentes evacuadas recebem por parte das suas embaixadas muitas vezes não é suficiente, nem sempre é rigoroso (com relatos de valores diferentes recebidos) ou atempado, com atrasos significativos.
5. À RELEVÂNCIA DE REFORÇAR E TRABALHAR A INTERCULTURALIDADE NO CONTEXTO NACIONAL.
A situação enfrentada pelos imigrantes em Portugal é semelhante à vivida por portugueses noutros países, pelo que essa consciencialização deve ser promovida nos espaços educativos e nas comunidades locais. É preciso sensibilizar as comunidades locais para melhor acolher as pessoas migrantes, uma vez que vários chavões e preconceitos, muitas vezes difundidos por falta de conhecimento, dificultam ainda mais a integração. Além disso, é crucial que as vozes das comunidades migrantes e racializadas, principalmente as que vivem numa situação mais precária, sejam ouvidas e incluídas nas soluções propostas, garantindo uma abordagem mais equitativa e inclusiva para enfrentara discriminação sistémica e promover uma integração social justa. Com o crescimento de ideias xenófobas entre os mais jovens, é fundamental que as organizações da sociedade civil, as várias confissões religiosas presentes em Portugal e suas redes, bem como as entidades públicas e privadas, atuem na educação para a interculturalidade, focando no potencial transformador da educação. Existem várias iniciativas em curso há vários anos, que podem ser reforçadas e apoiadas para aumento do seu alcance.
6. À NECESSIDADE DE ADAPTAR A COMUNICAÇÃO, REFORMULANDO AS MENSAGENS E AUMENTANDO O SEU ALCANCE.
Por um lado, adotar um discurso mais positivo e digno em relação às pessoas migrantes, que humanize e eleve essas pessoas, trazendo mais positividade para o debate público, e com base em informação atualizada, concreta e fidedigna, bem como numa linguagem adaptada aos públicos-alvo.
É, por isso, crucial que, as campanhas de comunicação também se concentrem em combater estereótipos e desinformação, amplamente disseminados, promovendo um discurso que valorize a diversidade e a contribuição dos migrantes para o País.Para isso, é essencial fortalecer a colaboração com organizações e investigadores que desenvolvem estudos na área das migrações, garantindo que os dados produzidos sejam acessíveis.Desta forma, será possível fundamentar melhor as políticas públicas e combater a desinformação.
Por outro lado, ter uma atenção especial aos meios e formas de comunicação, enfatizando-se o papel da comunicação social pelo seu alcance, mas também de outros meios com elevado poder de sensibilização, como é o caso das linguagens artísticas, da criação de espaços de encontro e partilha de experiências, da promoção de iniciativas que deem dimensão às vozes dos próprios: quer no contacto direto quer na disseminação das suas mensagens e histórias, numa perspetiva de proporcionar alívio ao seu sofrimento e exposição das dificuldades que dão mote aos seus movimentos, assim como das soluções que encontram (inclusive para as políticas públicas) e da resiliência(tantas vezes heroica) que lhes garante a sobrevivência e, por vezes, uma vida digna.
Por fim, a promoção de parcerias, consultas e diálogos multi-atores e intersetoriais sobre políticas com uma participação alargada, enfatizando uma abordagem mais abrangente e transversal, que ultrapasse os silos em que, por vezes, as organizações trabalham, e promovendo o debate e troca de experiências a todos os níveis.
Juntos pela promoção de um desenvolvimento mais justo, inclusivo, digno e sustentável.
Os signatários,
— Esta carta aberta surge no âmbito do projeto Coerência – O Eixo do Desenvolvimento cofinanciado pelo CICL,I.P implementado em Portugal pela FEC e pelo IMVF.