[Nour ElAssy/TNH] Apesar de tudo, as crianças brincam nas ondas na costa de Gaza, durante a guerra israelita devastadora que dura já há um ano.
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No Líbano, ainda consigo pronunciar uma palavra: Esperança.

Publicado a
7/10/2024

RMEILEH, Líbano

Chamo-me Mostafa*. Nasci em Homs e concluí o curso de Professor na Faculdade de Educação em 2011. A guerra na Síria começou nesse mesmo ano, e acabei por migrar da minha terra natal para a zona rural de Damasco em 2012. A vida era difícil e especialmente perigosa para jovens adultos, forçados a fazer o serviço militar em prol do regime. Por isso, inscrevi-me num curso de educação qualificado e certificado, para obter estatuto de estudante e ter acesso ao visto de viagem. Com este documento fugi para o Líbano, na esperança de começar uma nova vida.

Foi muito difícil começar de novo. Não consegui visto de residência no Líbano - tornei-me um refugiado, sem autorização de residência, num país com vastos problemas e uma história longa e ancestral com os sírios. Mas não me acomodei.

Comecei a trabalhar como chocolateiro. Amargo.

Apesar de receber pouco dinheiro, passava os meus dias a fazer crepes. Agridoce.

Depois de um ano a trabalhar pelo sonho de uma nova vida, e ainda sem acesso a um visto de residência no Líbano, conheci uma organização chamada Fratelli. Nessa altura, eu fazia parte de um projeto com um grupo de crianças sírias refugiadas na cidade de Saida e, num sábado como outro qualquer, alguns irmãos e membros da Fratelli juntaram-se a nós para dinamizar atividades educativas com o grupo. Senti uma alegria distinta ali.

Subitamente, dei por mim a voluntariar-me com o projeto Fratelli. Juro - o primeiro momento em que me juntei à Fratelli como voluntário num programa educacional para crianças foi inesquecível. Algo dentro de mim me dizia que este espaço era uma benção de Deus, e senti o meu coração cativado e acolhido. Estávamos em 2018.

Sou apaixonado pelo ensino e por ajudar crianças e jovens a crescer e tornarem-se adultos e, à medida que fui conhecendo os irmãos da comunidade Fratelli , percebi que partilhávamos esta paixão. Desde aquele momento inesquecível do primeiro contacto com a organização, o meu amor por este espaço crescia mais e mais.

Crianças em atividades desportivas no Projeto Fratelli [Fratelli Project]

Não era este o único sentimento que crescia em mim nesses anos de fuga. Passo a passo, a distância à minha terra natal, ao meu país de origem, amigos de infância, e até membros da minha família, também cresceu. Mais, e mais. Mas, também passo a pessoa, sentia-me cada vez mais a começar uma nova vida, tal como tinha desejado. Desde ser mais um refugiado entre tantos outros, para ser voluntário em programas com crianças e jovens; e desde voluntário até empregado diretamente no projeto Fratelli.

Graças ao apoio da comunidade, conseguia dedicar algumas horas por semana a ser professor dos programas de desporto para crianças, adolescentes, jovens, e mulheres. Nessa altura comecei também a dar aulas de Árabe a pessoas que já falavam a língua, mas nunca haviam tido a oportunidade de estar numa escola ou sala-de-aula. Nestas aulas ensinava pessoas dos 15 aos 60 anos a ler e escrever na sua própria língua.

Soa muito básico, eu sei. E é! Na Fratelli, as coisas mais básicas da vida tornam-se simples e reais. Como aprender a ler e escrever em apenas seis meses. Ou comer chocolate, que é também uma palavra fácil de ler - shukulata.

Sala de Aula de Árabe [Fratelli Project]

Quando a guerra começou em Gaza, em outubro de 2023, começou também no sul do Líbano, e dei por mim assoberbado com todas as memórias da minha terra natal e dos últimos anos. Os dias difíceis que vivi com a minha família e amigos na Síria começaram a misturar-se com os dias que vivia agora, no presente, longe da maioria deles. Assim que os aviões Israelitas começaram a sobrevoar o Líbano, quebrando a barreira do som dia após dia, senti que estava outra vez em Homs. O medo regressou. O medo de toda a destruição que os meus olhos viram, e do cheiro a morte que o meu cérebro insistia em não esquecer.

Ao dia de hoje, Homs é ainda uma cidade destruída. E durante o último ano, lembrei-me da sua destruição sempre que ouvia estes aviões, sempre que ouvia a explosão brutal que eles causam. O medo regressou, embrenhou-se nos corações de todos, e fez homens e mulheres, jovens e idosos, tremer.

O conflito no Sul do Líbano evoluiu para uma guerra, com o aumento dos bombardeamentos, aumento da destruição, aumento das mortes. As pessoas estão em fuga. Mais de um milhão de pessoas fugiu das áreas mais afetadas, em busca de lugares seguros, sem saber se estes lugares “seguros” existem neste momento.

A minha família e eu somos algumas dessas pessoas em fuga.

Todos fugimos das mesmas áreas, fugimos pelas mesmas razões, fugimos em busca da mesma coisa, mas nem todos fugimos para os mesmos sítios. Muitas famílias libanesas deslocam-se para as suas segundas casas nas montanhas, ou para casa de familiares que vivem em zonas mais seguras. Os que têm menos recursos, ou que não têm alojamento alternativo, refugiam-se em escolas públicas convertidas em abrigos. Mas os refugiados sírios não podem ficar nestas escolas. Em vez disso, acabem em parques públicos, a enfrentar as noites frias e a chuva incessante que cai por estes dias.

A minha família e eu somos alguns dos Sírios em fuga. Mais uma vez, tive de parar o meu trabalho, abandonar a minha casa, e fazer-me à estrada. De Homs para Sham. De Sham para Saida. De Saida para Tripoli, onde estou agora.

Às vezes pergunto-me o que é que me motiva a continuar a fugir, onde é que encontro a esperança de não desistir da procura de uma vida decente. Sabendo que não posso regressar ao meu país (onde seria preso ou forçado a integrar o exército), e que no Líbano não sou ninguém - sem papéis de residência, sem proteção social, sem direitos. E apesar de estar a fugir da guerra, nem sequer posso contar com refugiar-me num abrigo público.

Mas ainda consigo pronunciar uma palavra: Esperança. Faço-o lavado em lágrimas, com a lembrança das tardes passadas com a Fratelli a ensinar os jovens a ler a palavra: amal. Penso muito neles por estes dias, em como, tal como eu, têm a esperança de um dia viverem num país seguro, onde sejam legalizados, tenham um emprego e, acima de tudo, vivam em paz.

*Este não é o meu verdadeiro nome. Apresento-me como Mostafa porque tenho medo do que possa acontecer à minha família que está na Síria, se por alguma razão estas palavras chegarem aos olhos dos que colaboram com o regime de Bashar-al-Assad.

Para apoiar o projeto Fratelli e estar ao lado das pessoas refugiadas e deslocadas em Rmeileh, Sídon e Beirute, no Líbano, para além de partilhar este e outros testemunhos, podes contribuir através desta campanha: https://sopro.org.pt/libano/

Autores
Mustafa | Fratelli Project
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