A oeste da costa de Marrocos, dois milhões de pessoas habitam atualmente nas sete ilhas das Canárias. Foram originalmente reconhecidas por Juba II, rei da Mauritânia, como as “ilhas dos cães” devido ao elevado número de matilhas, e referidas como “Ilhas Afortunadas” por outros autores. O território atravessou um período de isolamento até ser reivindicado por Portugal, que entrou em litígio com o reino de Castela, até que o Tratado de Alcáçovas, de 1479, reconheceu a soberania castelhana. Os guanches – habitantes originais e povo associado aos berberes, do norte de África –, que durante séculos lutaram contra os invasores, acabariam por ser extintos, tanto por meio da perseguição como da assimilação espanhola.
Mais de 500 anos depois, há ainda quem procure as ilhas pela fortuna e fortúnio, numa travessia marítima semelhante, com condições precárias e falíveis, mas cujo ponto de partida é diferente. Do início de 2020 até 14 de novembro desse ano, 16.461 migrantes chegaram às Canárias por via marítima. No mesmo período de 2021, 18.021 migrantes deram às costas das ilhas, um aumento de 9,5%. Mas, ao mesmo tempo, o número de embarcações usadas para as travessias caiu. Em 2020, esse número foi de 555 e, em 2021, de 450 – uma queda de 18,5%.
Quando nos repetem o velho slogan condescendente de que “a História se repete”, ninguém conta com a ironia camuflada do destino daqueles que foram expulsos e querem voltar. Não para recomeçar uma guerra mas para lhe fugir. Voltam à procura da paz que perderam ou nunca tiveram, de construir soluções, de encontrar espaço para respirar e, talvez, algum alívio.
A erupção do vulcão na ilha de La Palma tornou ainda mais densa a névoa entre a sociedade civil e o “inferno” às portas da Europa, encostado para canto tal como a própria geografia das ilhas. Apesar de não ter criado grandes constrangimentos para os migrantes, a lava desviou o foco mediático da água para o fogo, levando na “enxurrada” a parca atenção dispensada pela comunidade internacional e sociedade civil, cuja preocupação não ultrapassa os caudais do Mediterrâneo.
Do desespero destes milhares de migrantes aproveitam-se os contrabandistas, que cobram fortunas a infortunados sem garantias de que pisam a terra prometida, diluindo o sangue na espuma dos dias que sobe e desce nas areias insulares. Em 2021, até 30 de setembro, 785 pessoas, incluindo 177 mulheres e 50 crianças, morreram ou desapareceram na travessia para as Canárias. O número de mortes aumenta diariamente.
Mesmo para os que conseguem chegar, começa uma nova travessia, desta vez política e burocrática com barreiras físicas, linguísticas e psicológicas.
Um artigo do El País, publicado em fevereiro do ano passado, assinala que, apesar das 23.000 chegadas de migrantes durante 2020, foram formalizados apenas 3.984 pedidos de asilo. Porém, o dado relevante não é só o (baixo) número de pedidos, mas sim a origem dos mesmos: mais de 90% dessas solicitações são de latino-americanos chegados de avião. Os africanos – que fogem de conflitos, mutilação genital, casamentos forçados e perseguição política – representam apenas 8,6% dos pedidos. Os dados foram fornecidos pelo Ministério do Interior espanhol.
Desde 1986, a Comissão Espanhola de Ajuda ao Refugiado (CEAR) está nas Canárias a ajudar nas políticas de acolhimento, inclusão e integração, apoiando os migrantes com aulas de espanhol, sessões de orientação jurídica, apoio psicológico, formações e no desenvolvimento do dia-a-dia no dispositivo de acolhimento no qual residem.
“E algo importante: normalizar a sua situação com serenidade e equilíbrio, oferecer uma visão do que será o seu futuro imediato, a continuidade do seu projeto migratório e tentar viver com a naturalidade de qualquer pessoa que enfrenta a vida”, explicou-nos o coordenador da CEAR na região desde 2006, Juan Carlos Lorenzo, licenciado em direito e especialista em microcréditos.
Às dificuldades de integração e inclusão social, somam-se vários problemas como o de redirecionar migrantes que pretendem chegar à Península Ibérica ou outro país europeu, a escassez de oportunidades para os que estão em situação irregular e, acima de tudo, a incompreensão da população local para com aqueles que são obrigados a migrar por uma miríade de situações: desde perseguições, conflitos, mudanças climáticas, neocolonialismo às condições sociais e económicas agravadas pela pandemia de Covid-19.
“Uma das questões que deve ser estudada em profundidade no caso canário é o papel crucial desempenhado pelas redes sociais na criação e difusão de notícias falsas para gerar um discurso de ódio”, sublinhou Juan Carlos Lorenzo.
Durante o confinamento provocado pela pandemia de Covid-19, os hotéis de um arquipélago que subsiste maioritariamente do turismo acolheram os migrantes. Este foi o ponto de partida para uma campanha de desinformação, insinuando que a migração estava por trás do “zero turístico”, promovendo manifestações para reforçar a ideia de que “uma família das Canárias não teria direito” ao mesmo benefício ou que os migrantes “vêm ficar com o que é nosso”, prosseguiu Juan Carlos Lorenzo.
Uma vez “semeada” esta ideia, começou a ser explorada a “insegurança nas ilhas e o perfil delinquente dos migrantes”, citando o ativista, com vídeos de agressões e lutas a inundarem as redes sociais para vincular a migração ao crime, independentemente da polícia e de o delegado do governo central terem desmentido com dados objetivos o aumento da criminalidade na ilha e a vinculação aos migrantes. A estas mensagens juntaram-se protestos anti-imigração, agressões, ações de perseguição e deportação num momento de grave crise económica e social com impactos profundos nos bairros mais desfavorecidos.
No entanto, houve também um importante movimento de apoio aos migrantes, através de outras organizações como a Somos Red, na Gran Canária, e a Assembleia de Apoio aos Migrantes de Tenerife, e também de paróquias e habitantes locais que preenchiam os espaços vazios deixados pelas instituições, oferecendo guarida a jovens que pernoitavam nas ruas.
No ano passado, um tribunal decidiu que é ilegal a detenção de migrantes na ilha. Isso impede violações de direitos humanos como as assistidas na doca de Arguineguín em 2020, com centenas de migrantes apinhados para lá das 72 horas de custódia policial permitidas, o que levou à intervenção do Ministério Público espanhol para o desmantelamento do acampamento improvisado cujas camas eram o asfalto.
Apesar das tentativas para contactar um dos envolvidos no processo, as tragédias constantes não deram tréguas. “Estou desde o início da semana com familiares de desaparecidos de um bote com oito mortos. Não tive tempo”, disse-nos.
Esta não é exceção mas a regra numa terra paradisíaca para alguns e malfadada para os que mais dela precisam.
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Nota: Este texto foi escrito com números e dados recolhidos até novembro de 2021. Até ao final do ano, as travessias, chegadas e mortes de migrantes continuaram a aumentar.
Este é o terceiro episódio escrito, narrado e interpretado em língua gestual no âmbito do projeto Observatório. Documentar a Urgência.
O texto foi escrito pelo André Guerra e narrado pela Margarida David Cardoso. O som foi editado pelo Bernardo Afonso.
A interpretação em língua gestual foi feita pela Catarina Pereira.
O vídeo foi compilado pelo Pedro Amaro Santos.
A música foi comprada na plataforma: epidemicsound.com
A iniciativa é da MEERU | Abrir Caminho, apoiada pelo IPDJ - Instituto Português do Desporto e Juventude, I.P.