O Mundo para lá do nosso confinamento

Publicado a
3/6/2020

Desde o primeiro momento que ficou claro que os tempos que vivemos são um teste exigente à capacidade das sociedades se organizarem e protegerem. Os dias que atravessamos desafiam-nos na resposta a emergências e na readaptação do quotidiano.

Assim que nos sentimos ameaçados, ouvimos e narramos a história de que estamos todos no mesmo barco a lutar contra um inimigo comum. Sem aviso, este inimigo expõe as fragilidades dos nossos sistemas, lembrando-nos o quão vulneráveis somos e a importância da solidariedade.

Talvez por isso, começamos a escrever narrativas de proximidade reforçada para com a nossa comunidade, os nossos amigos e a nossa família. Olhamos à volta e percebemos que na nossa própria rua são muitos os desafios. Reinventamos as nossas formas de reencontro com amigos, familiares e vizinhos. Reconhecemos a resiliência e o serviço de milhares de pessoas que garantem o cuidado por cada um de nós.

Num tempo de poucas respostas e de muitas perguntas, estas histórias de luta contra um inimigo comum têm sido o alento para acreditarmos que “vai ficar tudo bem”.

Importa pararmos para pensar se esta será a história de todos ou será uma história confortável vivida apenas por alguns, esquecendo todos aqueles que já antes ocupavam as periferias das nossas sociedades.

A partir do nosso recanto desafiante de confinamento, olhamos, agora, com uma distância ilusória, perigosa e ainda maior outras histórias de dor acumulada, noutros contextos e geografias. Apagamos até algumas delas. Igualamos o sofrimento de milhões de pessoas ao nosso. Substituímos a capacidade de empatia por quem sofre mais, há mais tempo e em circunstâncias diferentes, pela simpatia por quem sofre o mesmo e ao mesmo tempo que nós.

Não estaremos a construir histórias de solidariedade que continuam a ser apenas sobre nós próprios ou sobre o que sentimos como nosso?

Não estaremos a alimentar uma falsa sensação de dever cumprido, que nos desresponsabiliza de olharmos para os mais frágeis entre os frágeis?

Multiplicam-se, por todo o mundo, as notícias de como o lockdown tem agravado as desigualdades sociais. Quem já estava isolado, sofria de violência, vivia na rua, estava desempregado, tinha fome, vivia num conflito armado, era excluído ou esquecido, enfrenta esta pandemia carregando o sofrimento acumulado de outras crises, problemas sociais ou guerras.

Olhemos para a emergência humanitária que se vive nos campos de refugiados da Grécia, usando como exemplo o Campo de Moria, na Ilha de Lesbos. Num espaço construído para 3000 pessoas, vivem mais de 20 000 (204 000 pessoas por km2). A densidade populacional é 45 vezes maior do que na cidade de Londres (4500 pessoas por km2. Já antes da pandemia a situação era alarmante):

Existia 1 casa de banho para cada 167 pessoas e 1 torneira para cada 1300 pessoas.
— As filas de espera já eram de 2 a 3 horas.
— Famílias de 5 ou 6 pessoas já dormiam em espaços de menos de 3m2.
— A distribuição de alimentos já era aquém das necessidades nutricionais diárias dos residentes.
— O acesso aos cuidados básicos de saúde estava limitado por questões legais, imposições do governo ou falta de capacidade de resposta das organizações no terreno.

Esta crise humanitária toma agora proporções maiores devido ao elevado risco associado à propagação do surto de coronavírus. Só em Moria há cerca de 500 casos vulneráveis: 200 idosos e 300 pessoas com doenças crónicas que poderão vir a precisar de cuidados médicos diferenciados. Há apenas seis camas de cuidados intensivos. As medidas recomendadas para impedir o contágio são impossíveis de praticar.

Campo de Moria

Uma solidariedade que vai para além dos limites do nosso confinamento e do que sentimos como nosso tem de assentar numa empatia que nos implica e responsabiliza pelo que se passa em locais como Moria. Se a nossa resposta perante esta pandemia se limitar a tornar urgente o necessário apoio aos nossos vizinhos e adiar a urgência de soluções para situações como as das ilhas gregas, construímos uma solidariedade que pode vir a revelar-se frágil e com prazo.

O dia depois de amanhã trará as consequências desta história única e desta solidariedade presa por um fio. O dia depois de amanhã trará o agudizar das assimetrias e dos egoísmos do velho mundo. Uma vez mais, o nosso “nós” é incompleto.

Como os tempos nos têm mostrado, este “nós” incompleto é o primeiro passo para um “eles” do lado de lá: de quem temos medo, arrumados e excluídos. Crises que desafiam as capacidades das nossas sociedades colocam facilmente etiquetas no “eles”. Para que possamos ter esta, ainda que falsa, sensação de tranquilidade tendemos a demarcar-nos de quem não incluímos neste “nós”. É com estas etiquetas que nos sentimos do lado certo, a fazer a coisa certa ou necessária, ignorando tudo o que está para lá da diferença ou vista e perpetuando o sofrimento nas periferias.

A história da comunidade de refugiados de Braga, que tem apoiado diariamente dezenas de pessoas da região com refeições, é um bom exemplo do esforço de construir este ‘nós’ com espaço para todos. Para lá das suas histórias de sofrimento por guerras e perseguições, e para além dos desafios da integração num novo país, a comunidade acolhida pelo CLIB — Colégio Luso Internacional de Braga tem os olhos postos fora dos limites de si mesma.

Há anos que, para o CLIB, o acolhimento e integração de pessoas refugiadas é uma prioridade. Com a chegada da COVID-19, não deixaram de lado essa missão. Antes, assumiram-na, olhando os desafios do mundo em seu redor. Juntos, apoiam agora pessoas sem abrigo, pessoas que viviam da prostituição, famílias que ficaram sem emprego, vários migrantes e muitos idosos que estão isolados sem forma de se deslocar.

Desta forma, a solidariedade à crise provocada por esta pandemia é parte fundamental da sua própria integração. Com toda a naturalidade, sem nunca deixarem de receber, estas pessoas dão. Em vez de agudizar a preocupação com a sua situação e os afastar, a urgência da pandemia aproximou-os de tudo o que se passa à sua volta.

CLIB

A crise mais importante das nossas vidas exige que não esqueçamos todas as vidas que, mesmo antes desta pandemia, já se encontravam suspensas. Em tempos de crise, sofremos todos. Mas sofrem muito mais os últimos entre os últimos. A crise que vivemos exige mais comunidades como o CLIB. Olhemos para lugares como Moria não como um problema adiado e distante, mas como parte do nosso desafio atual. A perspetiva de solidariedade que estamos a construir tem que incluir uma resposta urgente a todas as pessoas em todos os contextos.

Este é o tempo de pensarmos na necessidade de um “nós” inteiro. Encarar esta crise com os olhos postos no dia depois de amanhã é arriscarmos alargar o nosso entendimento do conceito de Humanidade para além das fronteiras do que nos é conveniente.

Isto exige de nós o desconforto de um olhar mais profundo que construa uma solidariedade assente na relação, na empatia e na responsabilidade, mas cujo centro está fora de nós próprios.

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Artigo escrito no âmbito do evento MEERU Convida Amigos - O dia Depois de Amanhã, em maio de 2020.

Autores
Pedro Amaro Santos
Autor
Isabel Martins da Silva
Autor
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