— Esta história foi publicada originalmente pelo The New Humanitarian.
Como a bondade me ajudou a sobreviver durante um ano de genocídio de Israel em Gaza
DEIR AL-BALAH, Gaza
Enquanto observo a lua cheia que surge acima dos céus escuros de Gaza, tudo o que consigo pensar é no estado de falência moral do mundo que permite que este genocídio aconteça ao longo deste ano. No meio de tudo isto, como é que nós – os palestinianos que ainda sobrevivem em Gaza – preservamos a nossa humanidade? Como é que mantemos a nossa bússola moral quando tudo ao nosso redor nos incentiva a abandoná-la?
Continuo a olhar para o meu povo e talvez a maior bênção durante toda esta calamidade que nos atinge seja o facto de constantemente nos incentivarmos a permanecermos afetuosos uns com os outros.
Com toda a violência, dor e sofrimento, vivemos permanentemente com raiva, ansiosos e nervosos. É uma luta constante manter a sanidade, continuar a viver de acordo com os nossos valores e tratarmo-nos uns aos outros com gentileza. Mas continuamos a encontrar energia onde não resta nenhuma.
Talvez seja aqui que o Regime de massacre Israelita está certo: aqui em Gaza, na Palestina, somos todos lutadores. Somos todos lutadores porque ousamos manter a nossa humanidade. Esta é a batalha silenciosa; aquela que estamos a travar com nada para além dos nossos corações e corpos esfomeados, sobrevivendo a balas após balas, bombas após bombas.
Somos, de facto, lutadores, guerreiros, um povo que continua a levantar-se. A banalidade da nossa luta escapa à forma como o mundo nos vê: não somos apenas vítimas da raiva impiedosa e sangrenta. Somos os que resistem diretamente, mesmo que a resistência não surja da forma esperada.
Permanecemos juntos
Durante esses tempos difíceis e trabalhosos, aprendi o que significa ter uma família, ser humano e apoiar os outros de forma altruísta.
Quando Israel atacou Gaza como um todo, estava a fazer algo ainda mais sinistro do que ceifar vidas e destruir edifícios. Estava a tentar destruir as coisas intangíveis que nos unem. Esta é a estratégia dos exércitos e dos regimes coloniais – dividir e conquistar.
Israel não estava a tentar massacrar-nos a todos. Preservará sempre uma parte da população simplesmente para poder dizer: “Vêem como não os erradicamos a todos?”
Mas o que está a fazer – ou pelo menos a tentar fazer – é transformar o parentesco e a segurança que sentimos uns com os outros; colocar-nos uns contra os outros, deixar-nos ressentidos uns com os outros e está a criar uma população que direciona a sua raiva e frustração para dentro.
O que Israel e todos os seus aliados não conseguem entender, compreender e reconhecer é que, em cada momento, nós fazemos exactamente o oposto.
Eles mostraram-nos o que significa ser selvagem e desumano, impedindo a entrada de carrinhas humanitárias na Faixa de Gaza, impedindo-nos de aceder ao nosso dinheiro e fazendo com que os preços até dos produtos mais básicos subissem inacreditavelmente. Mas nós permanecemos juntos desde o início.
É verdade que algumas pessoas se tornaram egoístas, pensando apenas em si mesmas. Mas outras fizeram tudo o que podiam para dividir a quantidade limitada de alimentos de que dispomos – mesmo quando era o único alimento que têm para os seus filhos – e partilhá-los com outros.
Família e sobrevivência
Aquilo a que estamos a sobreviver em Gaza não é apenas a ferocidade das armas letais de Israel; é também a exaustão mental, a desregulação emocional e o esgotamento da esperança e da fé que o ano passado trouxe. Acredito que Israel está a fazer isto para que, se algum dia decidirem dar-nos uma oportunidade real de negociação, procuremos o mínimo necessário.
Afinal, somos feitos apenas de carne, ossos, coração e alma – todos componentes frágeis da nossa composição humana; todos os quais requerem cuidados constantes e que são capazes de apodrecer. A única coisa que nos salva somos nós.
A família é a que trava uma das batalhas mais difíceis neste episódio maníaco de liquidação.
Antes da guerra, a minha família não era rica, mas eu vivia uma vida com a qual a maioria das raparigas sonha. Tinha o luxo de uma casa, uma educação superior e o melhor material para pintar. Sou pintora e costumava pintar pinturas a óleo em telas . Sinto mais falta disso do que alguma vez imaginei. É claro que não podíamos suportar tudo o que eu desejava, mas eu era feliz e muito grata.Agora, durante esta guerra, vejo o meu pai a lutar apenas para que não sintamos que já não podemos comprar as coisas mais básicas.Israel fez com que não tivéssemos acesso ao dinheiro das nossas contas bancárias e o meu pai não tem como ganhar a vida. Mesmo assim, ele tem feito o seu melhor para nos dar o que precisamos. Mesmo quando não pode, dá-nos abnegadamente a pouco de comida que há disponível, mesmo que isso signifique que ele não comerá, preferindo suprir as nossas necessidades em vez das dele.
A puxar por mim
Já por várias vezes atingi o fundo do poço, perdi a esperança, pensei: “Isto é o fim”. Acabei de fazer 22 anos e já acreditei que vou morrer deslocada, que vou ser feita em pedaços e que ninguém conseguirá reconhecer as minhas feições, que vou morrer com fome sem poder realizar os meus desejos mais pequenos - voltar a comer na minha casa e viver até casar e ter uma família, morrer depois de uma vida longa e feliz rodeada das pessoas que amo.
Quando isto acontece, no meio de toda a escuridão que só parece aumentar, a única coisa que puxa por mim é a minha família.
A minha família foi obrigada a fugir a 7 de outubro do ano passado da nossa casa em al-Tuffah, um bairro no centro histórico da cidade de Gaza que existe desde o século XIII.
O meu irmão, que vive em Deir al-Balah, no centro da Faixa de Gaza, acolheu toda a nossa família sob o seu teto. Graças a Deus, não fomos obrigados a evacuar novamente. Mas estamos sempre com medo. A casa dele fica ao lado de um hospital, e os hospitais são frequentemente alvo dos militares israelitas. Tivemos de fugir uma vez, quando bombardearam a mesquita ao lado da casa, mas acabamos por conseguir regressar.
Eu, os meus pais, as minhas irmãs, os meus irmãos, os seus cônjuges e filhos, o meu tio e a sua família, éramos muitos para acolher. Vinte e oito pessoas numa só casa. Mas o meu irmão tentou fazer-nos sentir seguros durante as noites mais horríveis. No mínimo dos mínimos, tentou fazer-nos sentir que ainda estávamos em casa.
Enfiou a sua própria família - as suas duas filhas e os seus dois filhos - num quarto só para nos dar algum espaço para nos sentirmos confortáveis. Isto é a família; isto é a superação apesar da escassez de recursos, apesar da densidade de respirações num único quarto, apesar das bombas à nossa volta, apesar de tudo.
Dois extremos
Durante os meses de inverno, partilhávamos cobertores e abraços. Quando acordávamos com frio à noite, aterrorizados pelos bombardeamentos, tínhamo-nos uns aos outros. Demos força e paciência uns aos outros. Partilhávamos a comida à mesma mesa. Jogávamos às cartas até altas horas da noite para aliviar as longas noites frias.
Lembro-me da minha cunhada. Ela estava grávida e ficou doente. Sabe-se como isso pode ser doloroso. Uma mulher grávida já é vulnerável e fraca. Ela estava tão preocupada, e era uma noite de inverno gelada. A mulher do meu tio acordou a meio da noite e fez-lhe uma sopa quente. Sei que podem pensar que não é nada, mas era tudo o que ela precisava para sarar.
Quando tive febre - uma febre muito dolorosa - lembro-me que o meu corpo não parava de tremer debaixo de muitos cobertores. A minha mãe ficou ali a abraçar-me. Pensei que ia morrer. A minha cara estava tão vermelha, como se estivesse a arder. Lembro-me que toda a casa estava lá para mim, a perguntar-me se precisava de alguma coisa.
Não pude deixar de me perguntar: “Como é que pode haver dois extremos no mundo: o humano e o desumano?” Algumas pessoas lutam para fazer o que for preciso para ajudar o outro a aliviar a sua dor; outras continuam a provar que não têm qualquer problema em infligi-la.
Não sei exatamente o que se passava comigo. Tinha uma febre forte e o meu corpo não parava de tremer. Há tantas pessoas doentes. Tem havido grandes surtos de doenças, especialmente entre as crianças. É impossível encontrar medicamentos e, se os conseguirmos encontrar, são muito caros. Só há uma clínica na nossa zona para dar resposta a tudo isto. É uma luta para conseguir uma consulta - eu nunca consegui uma. Felizmente, sobrevivi.
São estas as coisas
Um dia, estava sentada junto à praia com os pés descalços na margem. Estava realmente devastada. Miserável. Não conseguia não chorar. Uma menina pequena sentou-se ao meu lado. Era muito bonita. O seu cabelo estava clareado pelo calor do sol, a sua pele queimada e ela pedia-me dinheiro. Naquele momento, eu não tinha nenhum para lhe dar.
Quando ela me viu a chorar, sentou-se ao meu lado e pediu-me para brincar com ela na areia. Brincámos e fizemos um pequeno castelo. Ela conseguiu fazer-me rir e deu-me um beijo na cara.
Mais tarde, enquanto caminhava pelas ruas despidas, vi um homem a vender bananas. Apetecia-me qualquer fruta, especialmente bananas, porque me fazem lembrar casa. Adorava comer uma de manhã, antes de ir para a universidade. Perguntei ao homem quanto custava cada uma. O homem disse-me um preço demasiado alto que eu não podia pagar. Continuei a andar, mas ele chamou-me e ofereceu-me uma.
Comi a banana com lágrimas nos olhos. Sabia-me a céu porque me fazia lembrar a minha casa.
Estas são as coisas pelas quais estarei grata até ao dia da minha morte: um beijo na bochecha de uma criança descalça na areia a escaldar; o homem que me deu uma banana porque sabia que eu queria uma e não tinha dinheiro para pagar; as pessoas que me estiveram sempre ao meu lado; as pessoas que abriram as suas casas aos seus irmãos e irmãs deslocados, e aqueles que partilham a sua comida e a comida dos seus filhos com os outros.
Estou grata a cada ser humano que manteve a sua humanidade apesar da violência terrível que vivemos diariamente.
Editado por Eric Reidy.
O The New Humanitarian não é responsável pela exatidão da tradução.
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