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Na fronteira bielorrussa, a vida humana como arma geopolítica

Publicado a
11/5/2022

No início de Dezembro do ano passado, a crise humanitária na fronteira entre a Polónia e a Bielorrússia estava ao rubro. Milhares de pessoas tentavam furar diariamente o pesado aparato montado pelas autoridades polacas para impedir as travessias fronteiriças, enfrentando o frio intenso desta época do ano. A alguns quilómetros, numa base aérea da cidade de Minsk Mazowiecki, organizava-se um mega-concerto com um cartaz que era um hino à boa disposição, encabeçado por Lou Bega, autor do outrora celebérrimo “Mambo No 5”. A sua missão: apoiar os soldados polacos que garantiam a “segurança” das fronteiras.

“Queremos agradecer a todos aqueles que assistiram ao evento ou que o viram pela televisão porque mostraram que a nação polaca apoia o uniforme polaco”, declarou na altura o ministro da Defesa, Mariusz Blaszczak, citado pela Al-Jazeera. A defesa da fronteira tornara-se um dos desígnios nacionais na Polónia, contribuindo para cimentar a posição do Governo ultranacionalista que está no poder desde 2015. O Banco Nacional da Polónia chegou a emitir uma nota e uma moeda para homenagear a “defesa da fronteira oriental polaca”.

Em Setembro, o Governo polaco daaeclarou o estado de emergência para as regiões que fazem fronteira com a Bielorrússia, seguindo o exemplo da Lituânia e da Letónia. Os três países viram-se desde o Verão de 2021 perante um enorme fluxo de migrantes, provenientes sobretudo do Iraque e do Afeganistão, que tentavam alcançar a União Europeia através da Bielorrússia. Calcula-se que várias dezenas de milhares de pessoas tenham, desde Agosto, chegado às fronteiras dos três países — um número inédito para qualquer um deles.

Leonid Scheglov (BelTA - Reuters)

A raiz da crise

Para explicar como é que milhares de pessoas saíram dos seus países no Médio Oriente, em África e na Ásia para mergulhar de cabeça num conflito geopolítico na Europa de Leste é preciso analisar os antecedentes das relações entre a Bielorrússia e a União Europeia. Em 2020, a Bielorrússia foi palco dos maiores protestos populares desde a sua independência, em 1991, que constituíram um desafio sem precedentes para Alexander Lukashenko, o ditador e único governante que o país conheceu.

Em causa estavam as eleições de Agosto daquele ano, marcadas por inúmeras denúncias de fraude. Antes mesmo de os bielorrussos serem chamados a votar, as hipóteses de retirar Lukashenko do poder já eram mínimas, uma vez que os principais candidatos da oposição já tinham sido afastados.

Para garantir a continuidade do seu regime, Lukashenko intensificou a repressão contra os activistas pró-democracia que enchiam as ruas de Minsk e de outras cidades. Foram detidas mais de 25 mil pessoas nos meses que se seguiram às eleições, algumas apenas por se encontrarem acidentalmente nos locais onde decorriam manifestações. “O governo bielorrusso rebentou o seu próprio historial horrendo de brutalidade e repressão. Não poupou esforços para silenciar os críticos em praticamente todas as camadas da sociedade”, dizia o director para a Europa e Ásia Central da Human Rights Watch, Hugh Williamson.

A União Europeia — que até aqui alimentava esperanças de que o regime bielorrusso pudesse aproximar-se dos padrões democráticos da Europa Ocidental — não reconheceu os resultados eleitorais que ditaram a reeleição de Lukashenko, rompendo efectivamente as relações entre Bruxelas e Minsk. Ao mesmo tempo, a UE aplicou um pacote de sanções económicas contra o regime bielorrusso e manifestou apoio político aos líderes oposicionistas.

Lukashenko não se conformou com o estatuto de “Estado-pária” a que Bruxelas despromoveu a Bielorrússia e prometeu ripostar. Uma das acções mais audaciosas e provocatórias foi a detenção do activista político Roman Protasevich, em Maio, quando este seguia num voo entre Atenas e Vílnius. Ao sobrevoar o espaço aéreo bielorrusso, as autoridades locais emitiram um alerta de bomba a bordo do avião, forçando-o a aterrar de emergência em Minsk. A polícia entrou na aeronave, mas apenas deteve Protasevich e a namorada: o alerta de bomba era falso. O activista continua a aguardar julgamento num local de detenção desconhecido.

A detenção, ocorrida num voo de uma companhia europeia que ligava duas capitais de Estados-membros da União Europeia, chocou o continente e levou Bruxelas a adoptar novas sanções para punir Lukashenko.

A resposta do homem-forte bielorrusso foi tirada do manual de outros líderes que no passado quiseram obter vantagens junto da UE, como o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. Explorando uma das maiores fragilidades do bloco europeu na última década — a dificuldade profunda dos Estados-membros em coordenarem uma resposta digna e eficaz ao fluxo de refugiados e migrantes que tentam chegar ao continente europeu —, Lukashenko abriu caminho a uma nova crise.

AFP

As portas da Europa

A Bielorrússia está longe de ser um país de trânsito tradicional para os requerentes de asilo provenientes de África, do Médio Oriente ou da Ásia, cujas rotas principais se concentram no Mediterrâneo Central, Sul de Espanha, e Balcãs. As autoridades consulares bielorrussas começaram no Verão do ano passado a facilitar a concessão de vistos turísticos para cidadãos iraquianos, afegãos e sírios, enquanto foram organizados voos charter com destino a Minsk.

Em articulação com redes de tráfico de seres humanos, agências de viagens começaram a publicitar as viagens para a Bielorrússia como a “porta de entrada para a UE”, com promessa de em poucos dias poderem estar em Berlim. Assim que chegavam a Minsk, os grupos de migrantes eram transportados por traficantes, com a anuência das autoridades locais, até às fronteiras com os países da UE, sobretudo a Lituânia e a Polónia.

Os governos destes dois países foram surpreendidos pela enorme quantidade de requerentes de asilo que chegava às suas fronteiras terrestres. No caso da Lituânia, por exemplo, até Agosto de 2021 tinham chegado mais de quatro mil migrantes de forma irregular, um número 55 vezes superior ao que tinha sido registado no ano anterior.

É neste contexto que regressamos ao drama humanitário nas fronteiras da Polónia e da Lituânia, nos últimos meses do ano passado. A militarização foi a resposta encontrada pelas autoridades nacionais para fazer face àquilo que designaram como “acto hostil” da Bielorrússia.

Mindaugas Kulbis (AP)

Com a entrada em vigor do estado de emergência, as regiões fronteiriças tornaram-se, na prática, em zonas de conflito. O acesso dos meios de comunicação foi vedado, assim como das organizações de ajuda humanitária, e até alguns responsáveis políticos foram impedidos de chegar perto da fronteira nestes países. Foi estabelecido um perímetro de pouco mais de três quilómetros a partir da fronteira cuja entrada era apenas autorizada a militares e à guarda fronteiriça.

Ao mesmo tempo, a prática dos push-backs (expulsões), proibida pelo Direito Internacional, institucionalizou-se e passou a integrar as legislações nacionais. As autoridades destes países resistem a usar o termo push-back, preferindo recorrer a eufemismos como “redireccionamentos”. Na Polónia, que enviou perto de 20 mil soldados para reforçar o policiamento da fronteira, as expulsões são frequentemente violentas, com recurso a gás lacrimogéneo e canhões de água.

Na prática, nestas fronteiras todas as noites joga-se uma espécie de jogo do gato e do rato: os migrantes que são deixados do lado bielorrusso a poucos metros da fronteira tentam entrar em zonas menos policiadas até conseguirem atravessar a zona de restrições.

Janis Laizans (Reuters)

É cada vez mais difícil fazê-lo. A Lituânia e a Polónia começaram a construir vedações ao longo de toda a fronteira com a Bielorrússia. Em entrevista ao PÚBLICO em Novembro, o vice-ministro do Interior lituano, Arnoldas Abramavicius, dizia que esta era “uma solução temporária”, justificada por considerarem a Bielorrússia “um vizinho hostil”. Na Polónia, as obras para a construção da barreira física na fronteira são contestadas por ameaçarem uma floresta primitiva. Mas nada parece demover as autoridades da sua construção — só em Janeiro, foram travadas quase mil travessias de migrantes, de acordo com o Governo polaco.

Apesar das limitações severas, uma parte considerável das sociedades civis polaca e lituana mobilizaram-se para mitigar as privações e dificuldades enfrentadas pelos migrantes, organizando grupos que iam em seu auxílio, frequentemente tendo de violar as regras impostas pelos seus próprios governos que criminalizam o trabalho humanitário. Na Polónia foi montada uma rede de ajuda em que os cidadãos que se disponibilizassem para receber ou apoiar migrantes perdidos nas regiões fronteiriças deveriam acender uma lanterna verde nas janelas das suas casas, numa espécie de código de auxílio.

Sem ajuda

Milhares de pessoas que acreditavam estar a evitar as rotas mais perigosas para chegar à Europa viram-se no meio de um conflito geopolítico que punha as suas necessidades no fundo da lista de prioridades. Quem conseguia escapar à guarda fronteiriça depois de ser deixado na fronteira, tinha de enfrentar várias noites frias, tentando esconder-se da polícia na floresta.

Sem possibilidade de uma cobertura mediática independente, não se sabe ao certo quantas pessoas morreram a tentar atravessar a fronteira, mas há notícia de pelo menos 21 mortes na fronteira polaca. O Governo lituano acabou por suavizar algumas das restrições no acesso à fronteira, permitindo a entrada de jornalistas autorizados, mas na Polónia o estado de secretismo absoluto mantém-se.

Wojetk Radwanski (AFP, Getty Images)

No início de Janeiro, a organização Médicos Sem Fronteiras abandonou a fronteira polaca ao fim de três meses, durante os quais viu sempre negado o acesso à zona restrita. “Sabemos que ainda há pessoas a atravessar a fronteira e a esconder-se na floresta, a necessitar de apoio, mas embora estejamos empenhados em ajudar as pessoas onde quer que estejam, não temos conseguido chegar a elas na Polónia”, afirmou o coordenador de emergência, Frauke Ossig.

A União Europeia apoiou as medidas tomadas pelos governos da Lituânia, Letónia e Polónia, justificando práticas como os push-backs, que contrariam os próprios tratados europeus, com a agressão bielorrussa. Ao contrário do que acontece no Mediterrâneo ou nos Balcãs, esta é uma crise fabricada com fins políticos, diz Bruxelas.

Por isso, a Comissão Europeia aprovou, em Dezembro, uma “flexibilização” com “carácter excepcional” das regras de asilo nestes Estados-membros, que, de acordo com algumas organizações humanitárias, abrem a porta a uma institucionalização definitiva das expulsões de requerentes de asilo.

Desde o início do ano, a pressão internacional fez Lukashenko recuar, diminuindo o número de migrantes que tentam atravessar a fronteira, mas nem por isso o problema está próximo de uma resolução. Milhares de pessoas estão agora detidas em armazéns perto da fronteira, que servem como centros de detenção improvisados.

Abbas, um migrante iraquiano que foi levado para um centro de detenção na Lituânia, em entrevista à BBC em Outubro, apenas tinha uma interrogação: “É culpa nossa que a Bielorrússia tenha aberto as suas fronteiras à UE?”

Maxim Shemetov (Reuters)

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Este é o quinto episódio escrito, narrado e interpretado em língua gestual no âmbito do projeto Observatório. Documentar a Urgência.

O texto foi escrito pelo João Ruela Ribeiro e narrado pela Margarida David Cardoso. O som foi editado pelo Bernardo Afonso.
A interpretação em língua gestual foi feita pela
Catarina Pereira.
O vídeo foi compilado pelo
Pedro Amaro Santos.
A música foi comprada na plataforma:
epidemicsound.com
A iniciativa é da MEERU | Abrir Caminho, apoiada pelo
IPDJ - Instituto Português do Desporto e Juventude, I.P.

Autores
João Ruela Ribeiro
Autor
Javon Jacobi
Fotografia
Judson Volkman
Som
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