Comunidade
10
min leitura

Isabel saiu do “sofá” para transformar “vítimas frágeis” em bons amigos

Publicado a
19/1/2022

Barcelense fundou organização que apoia a integração de refugiados

A chama acendeu do outro lado da Europa. Em 2016, nas Jornadas Mundiais da Juventude, na Polónia, Isabel Martins da Silva ouviu o Papa Francisco apelar aos jovens para saírem do “sofá” e deixarem uma “marca”. “Lembro-me de o Papa Francisco ter um discurso de construir pontes, derrubar muros, ir às periferias”, recorda. Palavras certeiras na cabeça de uma jovem inquieta, mas que pareciam demasiado vagas. “Como é que eu faço isso?”, questionou-se.

Foi quando regressou da Polónia que percebeu qual era a “marca” que tinha de deixar no mundo. Foi buscar as questões lá longe, mas a resposta estava mesmo ali no fundo da rua. Nesse mesmo ano, uma família de refugiados sírios foi acolhida na sua freguesia, em Carapeços. Apesar de não estar formalmente ligada ao acolhimento, o grupo de jovens Kyrios, ao qual pertencia, foi chamado a contribuir. Primeiro com algumas tarefas para preparar a casa que os ia alojar e, no dia em que aterraram em Lisboa, Isabel foi envolvida directamente. “Pediram-me ajuda para os ir receber a Lisboa, porque achavam que a família falava inglês”, relembra.

Esse dia em que os sírios Safaa e Mahmood, com duas crianças de colo, aterraram na Portela, mudou a vida de Isabel Martins da Silva. Licenciada em Direito, a jovem barcelense fundou em 2019 a associação MEERU, que actualmente apoia a integração de 13 famílias de refugiados em Portugal.

E tudo começou em Carapeços, em 2016. Quando a família foi acolhida na Casa da Nazaré, desde cedo que Isabel e os amigos do grupo de jovens perceberam que aquela família não podia “só ser colocada naquela casa e depois sozinha ia-se desenrascar”. “Isso não existe”, frisa. Sentiram que tinham de disponibilizar o seu tempo para conhecer a família e os ajudar. Não só em questões do dia-a-dia, mas, acima de tudo, nas “coisas maiores”. “De repente, éramos as pessoas que celebrávamos os aniversários e o Natal com esta família (…) Mais do que sermos aquelas pessoas que estiveram ali naquelas primeiras semanas para as coisas que eram mesmo urgentes, tornamo-nos amigos”, contou.

Até aí, Isabel vivia a questão dos refugiados como a maioria. Com enorme comoção ao ver os vídeos de barcos apinhados ou a fotografia de um bebé morto numa praia na Turquia. Mas foi a experiência em Carapeços que a empurrou. “Muito cedo nos apercebemos que era muito mais do que colmatar uma série de necessidades básicas. Mas sim, fazer com que essas pessoas tivessem amigos, quase família e sentissem que pertenciam mesmo à comunidade, que tinham pessoas em quem podiam confiar”, explica. Envolveu-se a fundo e hoje fala de Safaa e Mahmood como bons amigos.

Passados cinco anos desde a chegada desta família, o processo de integração ainda está longe de ser concluído, apesar de terem sido dados passos que enchem de orgulho o peito da Isabel. “É importante termos a noção que a integração é um processo mesmo muito longo e lento. Os programas de integração são de 18 meses e é completamente utópico acharmos que ao final de dois anos as famílias estão autónomas e capazes de construir o seu projecto de vida sozinhas. Isso não existe”, refere. Apesar dos passos que ainda há para dar rumo à estabilidade, “como com qualquer um de nós”, “o saldo é mesmo feliz e positivo”.

Não só pelo resultado, mas também pelo caminho. Logo à chegada, Mahmood conseguiu um trabalho numa empresa situada em Galegos (Santa Maria). Veio logo ao de cima um problema que existe no acolhimento de refugiados fora dos grandes centros: não havia transportes públicos que dessem resposta às necessidades. Mas, é também fora dos grandes centros, que é possível criar a rede informal que foi crucial para dar a volta aos problemas. “Durante algum tempo, até conseguirmos que ele tivesse a carta e um carro, ele tinha de ir com senhores reformados da freguesia que se disponibilizaram a levar todos os dias o Mahmood a trabalhar”, conta. Depois havia a necessidade de o casal frequentar aulas de língua portuguesa, que só existiam em Braga. “As duas crianças tinham de ficar com alguém. Durante meses era a minha avó e outra vizinha deles que tomavam conta dos bebés”, refere. Aí estavam as “pontes” que pareciam palavras “pouco palpáveis” nas Jornadas Mundiais da Juventude.

Não é óbvia a escolha das instituições em colocar as pessoas refugiadas em grandes centros urbanos ou descentralizar a respostar. Para Isabel Martins da Silva, “é preciso encontrar um equilíbrio”. “Facilmente no Porto existem vários centros comunitários que dão respostas a várias coisas, aqui não existe tradição de acolhimento e é normal (…) Para acolhermos em pequenas comunidades, é mesmo necessário haver este capital social montado. Connosco aconteceu de forma espontânea e eu acredito mesmo que se eu não tivesse ido a Lisboa naquele dia e o grupo de jovens não tivesse sido envolvido, esta família seria mais uma que se iria embora. Mais de metade dos refugiados que chegaram a Portugal foram embora. Há muitos factores, não é linear, mas contribui muito não existirem estas redes de suporte informal”, afirma.

Actualmente, os bebés que vieram da Síria na barriga da mãe e nasceram na Grécia “são tanto sírios como portugueses”. Para o ano já entram na escola primária. Mahmood tem um emprego na sua área de especialização, como técnico de electricidade numa empresa de Viana do Castelo. Safaa trabalha na integração de refugiados, como tradutora, na Cruz Vermelha de Braga. Descobriu a vocação para aprender línguas quando chegou a Portugal, quando, após um ano, já tinha “competências de português inacreditáveis”. Tem 29 anos e deixou os estudos “a meio” na Síria. Quando chegou a Portugal colocou como objectivo regressar aos estudos. Demorou cinco anos até finalmente conseguir ingressar no ensino superior. “E porque ela foi a pessoa mais resiliente e persistente que eu alguma vez conheci. De outra forma teria sido mesmo complicado. No lugar dela, eu depois de dois ou três anos a tentar aceder ao ensino superior cá e a não conseguir, provavelmente tinha desistido”, conta.

Há ainda “passos a dar” na integração, como no caso da habitação. “Em cinco anos é muito difícil para um casal sem rectaguarda familiar conseguir aceder à habitação no mercado de arrendamento normal. Tudo isto são dificuldades que não são só deles, mas da população portuguesa no geral”. Continuam a viver em Carapeços e não se pode dizer que estão “completamente independentes”. “Não estão, como eu não estou e a maioria de nós não consegue sair da casa dos pais neste momento”, afirma a jovem de 25 anos.

Criou projecto para replicar bom exemplo de Carapeços

Com raízes em Barcelos e Esposende, Isabel Martins da Silva mudou-se para o concelho vizinho aos 10 anos e, agora, mora no Porto. Apesar disso, sempre que regressa a “casa”, fá-lo em Carapeços. Está lá a casa da avó e é onde guarda muitos amigos da juventude. Foi precisamente em Carapeços que a sua vida começou a mudar. Depois de conhecer a família síria, decidiu ir conhecer mais de perto o problema. Em 2017 esteve em Lesbos e, no ano seguinte, passou uma temporada a fazer voluntariado em Atenas.

Foram experiências “impactantes”, importantes para perceber “a magnitude do problema”. Esteve num campo de refugiados em Lesbos a “dar sensação de normalidade às pessoas que vivem no campo”. Mais tarde, em Atenas, trabalhou num centro comunitário na zona urbana da capital. “Todos os anos volto a Atenas para visitar pessoas que ainda estão lá”. Apesar das emoções fortes no fundo da Europa, guarda o caso de Carapeços como a maior referência. “Lá não mudei a vida de nenhuma pessoa, mas aqui, a vida da Safaa e do Mahmood está diferente porque nós existimos”.

A rede informal que se criou na freguesia foi crucial na integração da família síria de Carapeços. Por isso, Isabel quis replicar esse caso de sucesso e fundou a organização MEERU, em 2019. Foi criada com a noção clara de que a integração não pode ser “só uma série de organizações que prestam cuidados”, mas têm de ser “pessoas reais que criam relações profundas com estas pessoas”. Depois de muito estudo e raio-x à situação, a estudante do mestrado em Direitos Humanos e mais seis jovens formaram a MEERU com o projecto “Aproxima”.

A ideia passou por “sistematizar aquilo que, de forma informal, aconteceu em Carapeços”. O trabalho desta associação passa por “encontrar pessoas locais nas comunidades”, capacitá-las e formar equipas de voluntários que “acompanham uma família para que, durante oito meses, se criem relações que perdurem no tempo”. A ajuda “formal” fica a cargo de outras instituições responsáveis, enquanto a MEERU preocupa-se em criar “relações de confiança”. “Não queremos que o “Aproxima” seja um projecto de ajuda. Claro que é de ajuda mútua, mas não aquela ideia que temos de ajuda unilateral, de cima para baixo. Isso não existe”.

Neste projecto, os voluntários e famílias têm de realizar um determinado número de encontros, passar tempos juntos. “Para já estamos a testar, temos o projecto com 13 famílias (…) a ideia é que depois dos oito meses do programa, os voluntários deixem de ser voluntários e passem a ser amigos normais das famílias”. E isso está a acontecer. “Ainda no outro dia vi nas redes sociais uma família iraquiana que já acabou o programa da MEERU há um ano e nas fotografias estavam os voluntários e familiares na festa de aniversário de uma delas”, referiu.

A ideia não passa por criar uma “bolha” com voluntários e famílias acolhidas, mas que estes voluntários sejam “construtores de relações com outras pessoas e as tragam para a vida da família”. Por isso, na  associação sediada no Porto, MEERU, a família migrante não é o “centro do projecto”. Aliás, Isabel acredita que isso até faz “com que muitos projectos falhem”. “São 18 meses em que as famílias são apenas receptoras de ajuda e depois acabam os 18 meses e é impossível viverem autonomamente, porque dependeram de ajuda durante 18 meses”. A organização MEERU pretende que as famílias “sejam mesmo activas” neste processo de integração e recusa as abordagens meramente “assistencialistas”.  

O projecto “Aproxima”, da MEERU, tem financiamento garantido até 2023 através do programa “Portugal Inovação Social”. Para além do financiamento público, 30% é proveniente de empresas privadas, como as barcelenses Pedrosa & Rodrigues e Familitex, que também apadrinham a MEERU.

Para além da sustentabilidade financeira da organização, outro dos desafios da MEERU é a sensibilização para a causa. Como “tema fraturante”, é “sempre um desafio” ser “consensual”. “Na sociedade civil, nem toda a gente concorda com aquilo que nós fazemos. Um dos nossos desafios é sensibilizarmos as comunidades para aquilo que nós fazemos”, afirmou.

Seria “irreal” pensar que estamos todos abertos a receber migrantes ou refugiados, como se pode ver pelo surgimento no espaço público de vozes ligadas à extrema-direita. “Esta semana fiquei abismada quando num dos debates para as Legislativas alguém ainda usou o argumento de que estas pessoas chegam com telemóveis. Este é o tipo de argumento que há cinco anos já foi desconstruído”, lamentou.

Apesar destas vozes que não chegam ao céu, Isabel acredita que estão longe de ter expressão no país. A experiência de Carapeços ensinou-lhe “muito” a lidar com a resistência ao desconhecido. “A maioria das pessoas tem só uma série de ideias pré-concebidas que facilmente se desconstroem quando estamos frente a frente com estas pessoas que chegaram e que aprendemos a viver em conjunto com elas. Há desafios ainda, alguma resistência a que estas famílias sejam acolhidas em algumas comunidades (…) mas a maioria das comunidades está aberta ao desafio, se fizermos isto com a abordagem certa”.

Por isso, dá tanto valor ao projecto que lidera – “Aproxima”. “Deixamos de representar estas famílias simplesmente como vítimas frágeis que vêm viver às custas do sistema. Isto não existe. A partir do momento que trazemos esta visão de famílias resilientes, activas e a maioria delas com vontade de trabalhar e contribuir para as comunidades… a história muda”, frisou. Deixam de ser apenas as pessoas que aparecem nos telejornais e nas capas de jornais. “A partir do momento que são nossos vizinhos, tudo muda, não é?”, atirou.

Isabel sabe que o país não são as caixas de comentários dos jornais online. É claro que “existem histórias de insucesso, conflitos a acontecer, como existem com famílias portuguesas vizinhas”. Mas a experiência diz-lhe que os rostos reais das pessoas que chegam a Portugal são de pessoas “trabalhadoras” e com vontade de se “enraizar aqui”.

Mas precisam de ser bem orientadas. “Isto não se faz só com assistentes sociais, faz-se com pessoas locais, vizinhos, pessoas que se disponibilizam a fazer parte da vida destas pessoas”, afirmou. E Portugal tem a “sorte de estar do outro lado da Europa”, com um “números e pessoas a chegar mesmo muito residual”. Há a “oportunidade de fazer as coisas bem”, ao contrário da Grécia ou da Itália. Por cá pode-se fazer a integração de “forma muito mais cuidada” e não apenas para “responder a estatísticas”.

Isso faz-se com o envolvimento da comunidade e Isabel não se cansa de nomear o caso dos novos carapecenses Safaa e Mahmood. Cinco anos depois de chegarem “continuam com uma rede forte de amigos e de pessoas aqui na comunidade”. “Se daqui a uns anos eles estiverem a passar dificuldades, não estarão sozinhos, sabem com quem contar”.

____

Artigo publicado pelo Jornal de Barcelos, escrito pelo jornalista Pedro Gonçalo Costa.

Autores
Jornal de Barcelos
Autor
Subscreve a nossa newsletter
Ao subscreveres, concordas com a nossa Política de Privacidade e dás o teu consentimento para receberes notícias sobre a MEERU.
Partilha