Quando Jovenel Moïse foi torturado e assassinado, no seu próprio quarto, às mãos de um alegado grupo de mercenários, em julho de 2021, a sua presidência sustinha-se num fio. O adiamento irregular das eleições, o reforço dos poderes presidenciais e o fim dos subsídios petrolíferos caíram mal nas ruas já tumultuadas. E sucedeu-lhe o caos.
No imediato, o poder ficou vazio: um primeiro-ministro demissionário ainda não tinha sido substituído, um Parlamento dissolvido, e um Supremo Tribunal sem presidente, que morrera duas semanas antes. Esta fotografia do momento é retrato da fragilidade de um Estado numa transição dolorosa para a democracia. No século XX, o Haiti viveu dezenas de sangrentos massacres de trabalhadores, golpes de estado, juntas militares, ditadores, eleições – a maioria, fraudulentas – e duas invasões norteamericanas. Só em 1996, aconteceu a primeira transição pacífica de poder de um presidente incumbente para um membro da oposição.
No Haiti, é como se a natureza, a corrupção e a violação dos direitos humanos nunca dessem tréguas. Gangs armados são, há vários anos, forças económicas e políticas maiores que qualquer tentativa de Estado, alimentando-se do vazio que um poder público sucessivamente incapaz e corrupto lhes deixa. Só têm vindo a crescer. A Fundação Je Klere, que, em 2019, identificou 150 grupos armados, diz que hoje serão demasiados para se contar. Controlam estradas, a distribuição de gás, comida e água potável. Os seus sequestros, em troca de resgates milionários, intensificaram-se ao ponto de, em outubro de 2021, serem raptadas uma média de oito pessoas por dia. 2021 terminou com o registo de mais de 940 raptos e a consequente asfixia financeira de centenas de famílias.
O poder destes grupos armados é tal que foi com eles que as Nações Unidas tiveram que negociar a entrega de ajuda humanitária após o terramoto de agosto. O México, por exemplo, teve que fazer recuar um carregamento de comida e medicamentos, atacado por grupos armados. Tanto a violência destes como a das polícias – mal pagas e mal preparadas – é impune.
O Banco Mundial chama-lhe o país mais pobre da América Latina e Caraíbas, tendo em conta o seu PIB per capita, inferior a um quinto da média da região. 60% da população vive abaixo do limiar da pobreza, dois terços nas dispersas zonas rurais da ilha, de onde cada vez mais procuram sair. Aí estão dependentes de uma agricultura muitas vezes insuficiente, à mercê da crescente erosão costeira, furacões, secas e degradação dos solos. A desflorestação severa, iniciada no período colonial, deixou o Haiti com apenas 1% da sua floresta original.
Num êxodo veloz, a maioria da população já vive em centros urbanos. Port-au-Prince, a capital que nos anos 50 tinha pouco mais de 130 mil habitantes, acolhe hoje quase três milhões de pessoas, muitas em sobrelotados bairros de lata. Cité Soleil, Cité L’Eternel, Martissant e Fontamara formam “um cordão de pobreza” em torno da cidade, alimentado pela tentativa de fuga à fome, com traumáticos contornos étnicos e raciais. Historicamente, a pequena elite, francófona e de pele mais clara, das cidades, detém as rédeas do governo, em oposição a uma maioria negra, crioula, dispersa nas áreas rurais do interior. A concentração de investimento público na capital acentua um fosso histórico no acesso a tudo: da educação à saúde, infraestruturas e serviços. Os 20% mais ricos do país detêm mais de 64% da riqueza, os 20% mais pobres, 1%.
E apesar dos enormes progressos nos últimos anos no aumento da esperança média de vida e recuo da mortalidade infantil, em 2019, ainda morriam 48 crianças a cada mil nascimentos. Quem hoje nasce no Haiti atingirá apenas 45% da produtividade que teria se tivesse acesso total a educação e saúde de qualidade, calculou o Human Capital Index. Mais de um quinto das crianças corre o risco de desenvolver limitações cognitivas e físicas, e não se espera que 22% dos jovens com 15 anos consiga sobreviver até os 60.
Passaram-se mais de 200 anos da sangrenta libertação dos franceses. Antes deles foram os espanhóis a escravizar indígenas taínos e cibonéis nas minas de ouro e conduzir à sua extinção no século XVI. No final desse século, França estava já no processo de repovoar este terço ocidental da Ilha Hispaniola com 800 mil pessoas metidas à força em navios negreiros, raptadas de vários pontos de África para o Mar das Caraíbas. Na ilha dividida com a antiga colónia espanhola de Santo Domingo, atual República Dominicana, a administração francesa montou na “sua” Saint Domingue uma lucrativa máquina de produção assente na exploração e abuso de pessoas e recursos naturais.
Durante quase uma década, no final do século XVIII, o Haiti representou mais de um terço de todo o comércio de escravos do Atlântico. Um dos mais brutais sistemas esclavagistas do mundo e um dos mais ricos do império francês. As práticas agrícolas intensivas degradaram os solos. E, durante um século, milhões de escravos alimentaram tentativas de rebelião.
Tomou-lhes mais de uma década. Primeiro sob a liderança de Toussaint Louverture, que conseguiu abolir a escravatura, em 1794, contra a vontade de Napoleão; e depois com Jean-Jacques Dessalines que, ao primeiro dia de 1804, declarou o Haiti a segunda nação independente das Américas, a primeira república negra do mundo.
Em troca, seguiu-se um bloqueio por parte das potências tementes da revolta dos escravos. França exigiu reparações que afundaram os instáveis e autoritários governos em dívidas contraídas a bancos europeus e norteamericanos durante mais de um século. “Em 1900, o Haiti estava a gastar cerca de 80% do seu orçamento em reembolsos de empréstimos”, diz a historiadora Alex von Tunzelmann. Além disso, a pilhagem veio de dentro. As lideranças haitianas insistiram na invasão da nação vizinha, até à conquista da independência da República Dominicana em 1844.
No século XX, o país foi duas vezes ocupado pelos Estados Unidos. De 1915 em diante, Woodrow Wilson fez um "ensaio precoce de nation building", como lhe chamou Jorge Almeida Fernandes, no Público. Reestabeleceu o controlo do governo pela elite, o trabalho forçado em obras públicas, e, após sangrentas revoltas, lançou-se a um vasto plano de infra-estruturas e reformas estatais. Nos anos 40, os norteamericanos ainda mantinham o controlo fiscal sobre o país.
Fora os militares, sucedem-se os golpes e os governos. Em 1957, ganha as eleições Papa Doc, alcunha do médico negro François Duvalier, que arquiteta um estado policial de terror que fez mais de 30 mil mortos em 30 anos. A ditadura só termina com o exílio do seu sucessor, o filho Jean-Claude “Baby Doc”, em França, em 1986.
A história repete-se em golpes militares sangrentos, um novo período de repressão, e, em 1994, as tropas norteamericanas regressam para abrir o mercado, que asfixia um mundo de pequenos agricultores, e restabelecer o poder ao padre salesiano Jean-Bertrand Aristide. Revela-se déspota.
Avança-se e recua-se violentamente até hoje, altura em que o geógrafo haitiano Jean-Marie Théodat é obrigado a escrever que “o abuso de poder e a corrupção frustraram” quaisquer programas de reforma do Estado após 30 anos de ditadura. Tem que dizer que “as tentativas de estabelecer um Estado democrático e moderno no Haiti, suficiente para garantir o mínimo de segurança e de serviços para que a população não tenha que os procurar no estrangeiro, falharam”. Um em cada três jovens entra para as estatísticas oficiais de desemprego. A maioria dos diplomados imigrou. Só à custa de programas de formação médica gratuita do governo cubano retornam ao Haiti médicos para trabalhar nas comunidades mais remotas.
Os que se veem obrigados a fugir engrossam as longas fileiras de migrantes no corredor humanitário até aos Estados Unidos, e muitos, aos milhares, são deportados de volta. O Haiti, afogado em dívida, sentado numa falha geológica, no corredor dos vendavais, não lhes dá futuro. E a natureza parece confirmar a desesperança. Quando a terra tremeu em 2010, o governo parou de contar aos 316 mil mortos. A ajuda humanitária trouxe a cólera – menos 9000 vidas. “No Sul, sabe-se que a capital está longe e que a ajuda internacional está a serviço de si mesma”, escreveu o jornalista haitiano Frantz Duval, depois do novo sismo, em agosto de 2021. “Para se levantarem”, acrescentava, “as zonas destruídas devem abrir bem os olhos para que não sejam roubadas duas vezes”. Pelo menos 2248 pessoas morreram. 650 mil precisaram de assistência imediata.
O Haiti que teve a escravatura, a revolução, a desflorestação, a exploração e a violência repete-se na pobreza, na corrupção, no analfabetismo, nos desastres ambientais e na escassez do Estado. Mas “ninguém poderia ter previsto os acontecimentos dos últimos meses”, escreveu a ativista e economista haitiana Emmanuela Douyo. “Grupo violentos estão a ganhar poder, a polarização a aumentar, e os anos de impunidade são um incentivo para os atores políticos fazerem o que quiserem sem medo de consequências. Tudo isto”, continuou, “serve para lembrar que o Haiti precisa de encontrar um caminho em frente – e os cidadãos haitianos, apesar dos muitos desafios, estão a tentar fazê-lo”.
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Este é o quarto episódio escrito, narrado e interpretado em língua gestual no âmbito do projeto Observatório. Documentar a Urgência.
O texto foi escrito e narrado pela Margarida David Cardoso. O som foi editado pelo Bernardo Afonso.
A interpretação em língua gestual foi feita pela Catarina Pereira.
O vídeo foi compilado pelo Pedro Amaro Santos.
A música foi comprada na plataforma: epidemicsound.com
A iniciativa é da MEERU | Abrir Caminho, apoiada pelo IPDJ - Instituto Português do Desporto e Juventude, I.P.