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Gaza e uma longa Nakba

Publicado a
26/6/2024
Gaza é um lugar quente apenas para notícias. É uma padaria de deliciosas, excitantes notícias de última hora. As pessoas vêm aqui para fazer histórias sobre guerras. Ninguém vem apenas para visitar. Dignitários e figuras públicas vêm para saber mais sobre Gaza. Sartre veio a Gaza. O meu pai viu-o na rua. Sempre senti que estava a viver dentro da televisão, permanentemente em frente aos pivôs dos noticiários.

Atef Abu Saif, Cartas de Gaza1 

- Produziam-se, na Palestina, uma série de tecidos de seda, exportados para países mediterrânicos, europeus e da península Arábica. Um deles, um tipo mais grosseiro, de seda crua misturada com lã, tornou-se conhecido como seda qazz. No início da Inglaterra moderna, conta o historiador palestiniano Nur Masalha, o nome desse tipo de tecido fino, muitas vezes transparente, usado em roupas, cortinas e pensos cirúrgicos, foi-se transformando em gaze ou Gaza, como a cidade na costa oriental do Mediterrâneo. Nas línguas semíticas, Gaza significa forte, feroz. Fundada há mais de cinco mil anos, é considerada uma das cidades mais antigas do mundo2.

Dela serviram-se os impérios. Viveu quatro séculos sob controlo otomano, depois sob domínio britânico, durante o seu mandato colonial sobre a Palestina (1920-1948). Foi ocupada pelo Egipto durante a campanha de limpeza étnica de 750 mil palestinianos por milícias sionistas, que culminou na expulsão de 80% da população árabe do território que se tornou o estado de Israel3. São os dias a que pessoas palestinianas chamam Al Nakba (a catástrofe) e em que em Israel se celebra a fundação do estado. Esse ocupou Gaza numa invasão militar em 1967 e estabeleceu lá colonatos durante quatro décadas, ilegais à luz do direito internacional. Eram mais de oito mil quando foram desmantelados em 2005. Dois anos depois, viria o cerco.

- "Eu quero captar a beleza de Gaza, não a guerra em Gaza, mas não tenho essa opção", disse Motaz Azaiza, fotojornalista palestiniano, que fotografou os primeiros 108 dias da guerra genocida sobre a região, desde outubro de 2023. “Os ataques dos grupos armados palestinianos foram rápida e justamente condenados pela comunidade internacional. Mas são os ataques sem tréguas de Israel aos territórios palestinianos ocupados que causam, de longe, a maior devastação”, escreveu a Amnistia Internacional4.

- Antes, Gaza tinha 470 mil casas5, 36 hospitais principais6, quase uma centena de unidades de cuidados primários, mais de 500 edifícios escolares7, milhares de funcionários públicos. Mais de 95% das crianças dos 6 aos 12 anos frequentavam a escola, a maioria terminando o ensino secundário8. Cerca de 90 mil pessoas, 4% dos habitantes, estudavam numa das suas doze universidades – proporção comparável à população francesa9. E, ao mesmo tempo, Gaza era um campo de espera e de morte a céu aberto. Um gueto com mais de 2,3 milhões de pessoas, numa área equivalente a um quinto da península de Setúbal10. Três quartos delas eram já refugiadas ou suas descendentes, oriundas de 190 aldeias palestinianas destruídas, desde os anos 40, à medida que o regime sionista se expandia11. Deslocadas dentro do seu país, às vezes, pela segunda, terceira, quarta vez. Estão enclausuradas desde o início do bloqueio israelita em 2007, imposto um ano após a vitória eleitoral do Hamas, movimento político islâmico sunita que governa ditatorialmente o território, com um braço que defende e pratica a luta armada pelo fim do estado sionista. Nos 17 anos de cerco, densificando cidades e campos de refugiados, a população cresceu quase 50%12. Quase metade são menores. Um adolescente com 16 anos é sobrevivente de, pelo menos, seis ataques militares israelitas de larga escala13.

- Antes, o cerco terrestre, aéreo e marítimo impôs-se sobre todas as dimensões da existência. O quase encerramento das fronteiras (apoiado pelo Egito) impedia a maioria dos residentes de Gaza de sair, controlava tudo o que entrava (de alimentos a medicamentos, de materiais de construção a brinquedos), limitava o que pouco saía. Sequestrada de liberdades básicas, cercada por um muro de arame, 60% da população vivia em pobreza, 40% desempregada14. Israel dominava a distribuição de água e energia. Eletricidade havia, em média, 10 horas por dia15. Água potável de acesso livre praticamente nenhuma – e a água, por si só, é uma ilustração clara dos mecanismos e efeitos da ocupação, não só em Gaza.

Como retrata The Guardian, em média chove mais em Ramallah, capital administrativa da Palestina, na Cisjordânia, do que em Londres, mas a água escasseia16. Desde 1967, todos os recursos e infraestruturas hídricas, incluídos os dois principais aquíferos subterrâneos, são controlados pelas autoridades militares israelitas, em violação da lei internacional e dos Acordos de Oslo. Pessoas palestinianas estão impedidas de construir qualquer nova estrutura de recolha sem licença do exército, quase impossível de obter. Não podem perfurar ou aprofundar poços, instalar bombas, não têm acesso ao rio Jordão e às nascentes. “Israel controla até a recolha de água da chuva na maior parte da Cisjordânia, e as cisternas de recolha de água são frequentemente destruídas pelo exército”, detalhou em 2017 a Amnistia Internacional sobre esta prática de décadas17. É uma das dimensões do regime de apartheid: ao mesmo tempo que restringe o acesso a palestinianos, Israel desenvolve uma eficaz rede de abastecimento dos colonatos ilegais nos territórios ocupados, explorando novos poços e nascentes na Cisjordânia, mantendo explorações agrícolas, pecuárias e piscinas. É também por isso que se distinguem facilmente as casas palestinianas, cheias de depósitos de água nos terraços, das dos colonos, que têm abastecimento garantido. Como resultado, israelitas consomem quatro vezes mais água do que palestinianos da Cisjordânia, obrigados a comprar a Israel 80% da água que consomem, ainda que extraída do seu subsolo, a preços inflacionados.

Já em Gaza, 97% da água do aquífero costeiro, que alimenta os lençóis subterrâneos, está contaminada e imprópria para consumo18. Devido aos bloqueios elétricos, ataques militares contínuos, a somar a uma histórica má gestão de recursos hídricos19, o funcionamento de poços de água, sistemas de saneamentos e estações de tratamento de resíduos é inconstante, levando a descargas de toneladas de esgotos não tratados. Isso traduz-se em históricas elevadas concentrações de clorofila, matéria orgânica e parasitas gastrointestinais nas águas costeiras20. Com a intensificação dos bombardeamentos e a destruição de infraestruturas, a população de Gaza acede atualmente a dois, três litros de água por dia, quando a Organização Mundial da Saúde recomenda um mínimo de 100.

- Antes, há vinte anos, o sociólogo israelita Baruch Kimmerling chamou a Gaza “o maior campo de concentração que já existiu”. O historiador António Louçã comparou-a ao gueto de Varsóvia durante a ocupação nazi da Polónia. Comparou-a pelos efeitos do trauma físico e psicológico na população reclusa, pela forma como a opressão instigou formas semelhantes de resistência, e pela reação de nazis e sionistas que a instrumentalizaram21. Comparou-a porque, por exemplo, em 2002, militares israelitas admitiram que estudavam táticas nazis usadas na operação que destruiu o gueto de Varsóvia, matou e deportou os seus sobreviventes, consideradas genocidas nos julgamentos de Nuremberga22. Estima-se que 13 mil pessoas, a maioria judeus, tenham morrido nesse ataque. “O porta-voz do governo de [Ariel] Sharon, Raanan Gissen, explicou que a escolha se justificava simplesmente por serem muito semelhantes as condições de combate aos palestinianos e as condições de combate aos insurretos do gueto. Em fevereiro de 2008, o vice-ministro da defesa israelita, Matan Vilnai, avisou que Israel iria fazer cair sobre Gaza um verdadeiro ‘Holocausto’23. E está a cumprir a ameaça”, escreveu António Louçã em 2009. 

- Depois de outubro de 2023, com a intensificação do bombardeamento e ataque terrestre do exército sionista em Gaza, as estatísticas tornaram-se curtas para a dimensão do genocídio: “O número de crianças mortas em pouco mais de quatro meses em Gaza é superior ao número de crianças mortas em quatro anos de guerras em todo o mundo”24, “Cerca de 26 mil crianças – pouco mais de 2% da população infantil de Gaza – foram mortas ou feridas em seis meses de guerra”25, “Desde a II Guerra Mundial, o mundo nunca viu nada como a destruição sem precedentes das casas em Gaza”26, “Os danos nas infraestruturas críticas estão estimados em cerca de 18,5 mil milhões de dólares – o equivalente a 97% do PIB combinado da Cisjordânia e de Gaza em 2022”27, “As mortes de trabalhadores humanitários em Gaza excedem o número de vítimas anuais de qualquer outro conflito nos últimos 20 anos”28. Mais de 75% da população de Gaza está novamente deslocada29. A lotação dos hospitais ainda operacionais ultrapassou os 400%30 – apenas quatro dos 36 hospitais não foram atacados ou invadidos pelo exército31. Não há eletricidade há oito meses. As Nações Unidas estimam  uma reversão no desenvolvimento humano em mais de duas décadas32.

- Depois de outubro de 2023, a invasão militar de Gaza é justificada pelo ataque coordenado pelo Hamas, que matou 1139 pessoas – um direito de autodefesa que Israel não pode invocar ao abrigo do direito internacional porque este é um território que ocupa33. O objetivo de “eliminar o Hamas”, declarado pelo governo sionista de extrema-direita de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro em 13 dos últimos 15 anos, colide com os vários momentos em que permitiu e incentivou o financimaneto ao movimento que considera terrorista34. Testemunhos de jornalistas e analistas – e até do chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell – descrevem a intenção do regime de, durante anos, manter um Hamas forte como contrapeso à Autoridade Palestiniana na Cisjordânia, atualmente governada pela Fatah, fomentando o divisionismo da sociedade palestiniana e o afastamento de um consenso político que desse força à sua autodeterminação35

Conseguiu, assim, partir um país em dois: na Cisjordânia, persegue uma cada vez mais brutal ocupação militar, que expulsa (quase mil pessoas desde o início do ano foram deslocadas à força), destrói (mais de 540 edifícios36), prende (9300 pessoas por motivos políticos, 3400 das quais sem acusação ou julgamento37) e mata (mais de 500 pessoas desde o início de outubro38); em Gaza, bombardeia todos os oito campos de refugiados, erradica famílias inteiras, tortura, viola e rapta39, destrói planos de progresso – por exemplo, cinco dezenas de médicos especialistas assassinados tinham planos para criar um sistema de saúde para um estado palestiniano40. Matou 37 396 pessoas, feriu 85 52341.

Serve-se há décadas da desumanização e demonização da população palestiniana – que, em Gaza, em particular, há muito vinha sendo utilizada na imprensa e no discurso político para justificar ações militares extremas contra o Hamas, escreve o académico palestiniano Tareq Baconi42. "Os animais humanos devem ser tratados como tal. Não haverá eletricidade nem água [em Gaza], só haverá destruição", disse no início do ataque Ghassan Alian, chefe de uma unidade de coordenação do ministério da defesa israelita43. E depois o seu ministro Yoav Gallant: “Aviso os cidadãos do Líbano que já vejo os cidadãos de Gaza a caminhar com bandeiras brancas ao longo da costa... Se o Hezbollah cometer erros deste género, quem vai pagar o preço são, em primeiro lugar, os cidadãos do Líbano. O que estamos a fazer em Gaza, sabemos como fazê-lo em Beirute". 

De entre os mais de 500 excertos de incitamento ao genocídio e à limpeza étnica contra os palestinianos que a organização europeia Law for Palestine recolheu de políticos, militares, jornalistas e académicos israelitas, citamos uma mais44. De janeiro de 2024, ministro das finanças, Bezalel Smotrich: “A única forma de assegurar o nosso controlo a longo prazo do território é através da criação de um governo militar que controle Gaza.” Uma longa Nabka.

1.  Livro This is not a Border: Reportage & Reflection from the Palestine Festival of Literature, coordenado por J. M. Coetzee, Michael Ondaatje e Chinua Achebe (2017)
2.  Livro
Palestine: A Four Thousand Year History, de Nur Masalha (2018)
3.  Livro
The Hundred Years' War on Palestine, de Rashid Khalidi (2020)
4.  Amnistia Internacional:
https://www.amnesty.org.au/israel-opt-challenging-myths-about-the-gaza-israel-conflict/ 
5.  NPR:
https://www.npr.org/2024/06/01/g-s1-1780/gaza-israel-infrastructure-water-schools-hospital
6.  Organização Mundial da Saúde:
https://www.who.int/news/item/06-04-2024-six-months-of-war-leave-al-shifa-hospital-in-ruins--who-mission-report
7.  Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas:
https://www.ochaopt.org/content/reported-impact-snapshot-gaza-strip-19-june-2024 
8.  NPR:
https://www.npr.org/2023/10/19/1206479861/israel-gaza-hamas-children-population-war-palestinians 
9.  Le Monde:
https://www.lemonde.fr/en/international/article/2024/05/27/the-ravages-inflicted-on-higher-education-in-gaza-can-only-favor-hamas_6672757_4.html 
10.  Comparação de Ziyaad Lunat, no livro
Do muro das lamentações ao muro do apartheid, organizado por António Louçã (2009)
11.  Visualizing Palestine:
https://visualizingpalestine.org/visual/original-villages-of-gazas-refugees/ 
12.  Reuters:
https://www.reuters.com/investigates/special-report/israel-palestinians-gaza-health/ 
13.  Visualizing Palestine:
https://visualizingpalestine.org/visual/six-wars-old/ 
14.  NBC:
https://www.nbcnews.com/news/gaza-strip-controls-s-know-rcna119405 
15.  Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas:
https://www.ochaopt.org/page/gaza-strip-electricity-suppl
16.  The Guardian:
https://www.youtube.com/watch?v=bCh043-gLIM 
17.  Amnistia Internacional:
https://www.amnesty.org/en/latest/campaigns/2017/11/the-occupation-of-water/ 
18.  Euro-Med Human Rights Monitor:
https://euromedmonitor.org/en/article/4644/Euro-Med-Monitor-at-HRC:-Gazans-are-slowly-poisoned-as-97%25-of-Gaza%e2%80%99s-water-is-undrinkable 
19.  Livro
In Search of the River Jordan: A Story of Palestine, Israel and the Struggle for Water, James Fergusson (2023)
20.  Programa das Nações Unidas para o Ambiente: https://www.euronews.com/green/2024/03/06/the-un-is-investigating-the-environmental-impact-of-the-war-in-gaza-heres-what-it-says-so-
21.  Livro
Do muro das lamentações ao muro do apartheid, organizado por António Louçã (2009)
22.  Primeiro referida no artigo “At the Gates of Yassergrad”, de Amir Oren, a 25 de janeiro de 2022, no jornal Hareetz
23.  The Guardian:
https://www.theguardian.com/world/2008/feb/29/israelandthepalestinians1 
24.  Philippe Lazzarini, diretor da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente:
https://x.com/UNLazzarini/status/1767618985397272831 
25.  Save the Children:
https://www.savethechildren.net/news/over-2-gaza-s-child-population-killed-or-injured-six-months-war 
26.  Associated Press:
https://apnews.com/article/un-report-gaza-destruction-housing-economy-recovery-4f61dcca7db3fd5eb3da5c6a25001e12 
27.  Banco Mundial e Nações Unidas:
https://thedocs.worldbank.org/en/doc/14e309cd34e04e40b90eb19afa7b5d15-0280012024/original/Gaza-Interim-Damage-Assessment-032924-Final.pdf 
28.  CNN:
https://edition.cnn.com/middleeast/live-news/israel-hamas-war-gaza-news-04-02-24/h_da9e6c0ef67d9978b7b4f1bbf56a80c0 
29.  Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas:
https://www.ochaopt.org/content/reported-impact-snapshot-gaza-strip-19-june-2024 
30.  Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas:
https://www.ochaopt.org/content/humanitarian-situation-update-176-gaza-strip 
31.  Washington Post:
https://www.washingtonpost.com/world/2024/05/21/gaza-hospitals-attacks-bombed-israel-war/ 
32.  Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e Comissão Económica e Social para a Ásia Ocidental:
https://www.undp.org/papp/publications/gaza-war-expected-socio-economic-impacts-state-palestine-0 
33. Aljazeera:
https://www.aljazeera.com/news/2023/11/17/does-israel-have-the-right-to-self-defence-in-gaza

As fotografias utilizadas pertencem à coleção 'THE WAR IN GAZA: 100 DAYS IN 100 PHOTOS' da  UNRWA.
Autores
Bernardo Afonso
Autor
Margarida David Cardoso
Autor
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