— Esta história foi publicada originalmente pelo The New Humanitarian.
Para onde quer que vamos, as ordens de evacuação e as bombas de Israel seguem-nos.
Nota do editor: Desde a escrita deste artigo, a autora foi forçada a deixar a área e a casa sobre a qual escreveu, após uma nova ordem de evacuação por parte dos militares israelitas em relação a partes de Dei al-Balah, a 16 de agosto.
DEIR AL-BALAH, Gaza
Enquanto escrevo, estou sentada numa sala vazia e cinzenta, rodeada pelo calor sufocante de Agosto, em Deir al-Balah, no centro da Faixa de Gaza. Os fortes raios do sol da manhã penetram pelas janelas. Não há cortinas. Essas, como tantas outras coisas que deveriam ser mundanas, tornaram-se um luxo.
Na verdade, não há mobília nesta sala. Apenas o chão desgastado e o meu caderno ao meu lado.
Esta é a segunda vez que chego a Deir al-Balah como uma pessoa deslocada durante a implacável guerra de Israel em Gaza, que já dura há mais de 10 meses. A primeira vez que vim foi em outubro passado, logo após o início da guerra.
Cresci no bairro de al-Rimal, na Cidade de Gaza. A casa da minha família foi atingida por dois ataques aéreos durante a primeira semana da guerra. Felizmente, conseguimos escapar. Mas desde então, para todos os lugares que fomos, seguiram-nos as ordens de evacuação e as bombas de Israel.
Eventualmente, fomos para Rafah, no sul de Gaza, onde achávamos que estaríamos seguros. Mas, no início de maio, Israel invadiu também aquela cidade, que se tinha tornado num último refúgio para muitos de nós. Mais uma vez, fomos forçados a escapar.
Parece difícil de acreditar, mas fui deslocada 12 vezes nos últimos 10 meses. Sinto que nunca mais terei um lar ou um lugar seguro para ficar. Já não consigo imaginar como é viver sem temer ser deslocada e perder tudo o que tenho a qualquer momento. É como se estivéssemos a tentar escapar da morte, mas a morte continua a perseguir-nos.
Também não espero poder ficar aqui em, Deir al-Balah. Tenho medo que o exército israelita volte e tenhamos que fugir novamente.
Tenho apenas 21 anos. Antes de tudo isto, sonhava terminar os meus estudos universitários, e ir para fora fazer um mestrado. Queria ver o mundo e explorar diferentes culturas. Agora, sinto como se a morte estivesse próxima. Tiraram-me a esperança.
De Rafah para Deir al-Balah
Antes de Israel invadir Rafah no início de maio, os meus pais, os meus dois irmãos e eu estávamos a tentar sair da Faixa de Gaza. Estávamos a preparar-nos para pagar a taxa de US$ 5.000 por pessoa exigida por uma empresa egípcia para organizar a nossa partida. O meu irmão de 18 anos e minha avó foram os únicos que conseguiram sair antes da invasão ter começado.
Agora, a fronteira de Rafah tem estado fechada desde que foi tomada e destruída pelo exército israelita.
Em vez de partir para o Egito, fugi de Rafah com os restantes membros da minha família e voltei a Deir al-Balah. No caminho, passamos por Khan Younis, que fica entre as duas cidades.
Khan Younis era um cenário horrível de destruição e escombros. Os prédios em ruínas destacavam-se com os alicerces de ferro retorcidos e carbonizados por bombardeamentos. O ar era denso devido às cinzas e ao fumo. Cada passo que eu dava fazia com que os escombros sob meus pés rachassem, como se o chão estivesse a gemer de dor. Senti as paredes dos prédios a sussurrar as tragédias dos seus antigos habitantes, agora deslocados como nós ou mortos. Até o sol parecia enfraquecido, iluminando o lugar de forma hesitante, como se estivesse relutante em revelar o que tinha acontecido ali.
A destruição era tal que, em alguns lugares, não consegui distinguir entre os contornos das estradas e das casas que antes estavam ali. Os fragmentos das portas e das janelas estavam espalhados no chão. As árvores que antes davam sombra e conforto aos habitantes tinham-se transformado em troncos carbonizados e as suas folhas desapareciam no ar como se nunca tivessem existido.
Quando cheguei a Deir al-Balah, tinham passado cinco meses desde a última vez que aqui tinha estado. Voltamos para a mesma casa em que tinhamos ficado antes, agora parcialmente destruída. A terra ao redor da casa tinha sido arrasada pelos militares israelitas desde a última vez que estivemos aqui. Antes, era tudo terras agrícolas e estufas que sustentavam as pessoas que costumavam viver aqui.
Agora, muitas das outras casas que aqui estavam foram completamente destruídas e transformadas em escombros. A única coisa que resta é terreno irregular e montes de terra deixados pelos tanques e escavadoras israelitas, que tornam difícil caminhar.
Buracos nas paredes
Desde maio — ao mesmo tempo que as pessoas de todo o mundo lotam aeroportos e comboios para as suas viagens de verão e férias — que estou confinada dentro das quatro paredes quebradas desta casa. Dezoito dos meus familiares moram aqui, e eu partilho este quarto cinzento com sete deles. A minha mãe, a minha irmã mais nova, várias das minhas tias e a minha prima dormem comigo, enquanto os homens dormem na outra parte da casa.
Há buracos nas paredes do quarto causados pelos bombardeamentos que nós remendámos com pedaços de pano esfarrapado e madeira. Não conseguimos manter fora da casa as baratas, formigas que mordem, pulgas e, às vezes, até ratos. Não há privacidade nem conforto.
A comida é mais escassa agora do que era antes, e é muito cara. O fecho indefinido da fronteira de Rafah fez-me perder a esperança de que algum dia sairei viva da Faixa de Gaza.
Todos nós, 18, nesta casa compartilhamos uma casa de banho. Não há porta nenhuma: apenas um pedaço de pano esfarrapado que cobre a entrada. Lá dentro, há uma grande bacia e um copo para banho. Não há água corrente porque as bombas de água foram destruídas, e não há eletricidade. Temos que caminhar quilómetros todos os dias para ir buscar água.
As manhãs podem ser enganosamente calmas. O ar carrega o cheiro do mar – a 30 minutos a pé – e às vezes podemos ouvir o som distante das ondas, o que nos oferece uma fuga temporária da realidade da morte ao nosso redor.
Mas a calma nunca dura muito. Ela é sempre quebrada pelo som de drones, helicópteros e caças israelitas. Os drones, especialmente, estão connosco 24 horas por dia. O zumbido é semelhante ao de uma mosca e é um lembrete constante de que a qualquer momento podemos ser mortos.
Imagino-me como era antes
Fico acordada até tarde durante a noite, a ouvir os sons dos bombardeamentos e afogo-me em pensamentos ansiosos sobre a morte. Durmo apenas cerca de quatro horas por noite — uma fuga temporária da nossa realidade implacável.
De manhã, acordo e escovo os dentes. Ainda tenho a escova de dentes elétrica que trouxe comigo quando fugimos da nossa casa em Gaza. Agora, ela geralmente está descarregada porque é difícil encontrar um lugar para a carregar.
Lavo o meu rosto com um copo de água. Não há espelho, então imagino-me como era antes de 7 de outubro. A verdade é que mudei muito. O meu rosto agora está coberto de acne e o meu cabelo está estragado. Perdi cerca de 12 quilos. O meu rosto está cansado e tenho olheiras.
Eu costumava ser disciplinada em tudo — dieta, sono, exercício, cuidar do meu corpo. Esta guerra transformou-me em algo completamente oposto. Tornou-me um corpo sem alma.
Não temos sabão e eu só posso tomar banho uma ou duas vezes por semana, se tiver sorte, por causa da escassez de água. Mas lavo as minhas mãos compulsivamente ao longo do dia, na esperança de que isso me impeça de apanhar as doenças que se espalharam.
Apesar de tudo, a minha mãe faz questão de que comecemos o dia com o pequeno-almoço. O sorriso dela não muda enquanto coloca essa humilde refeição diante de nós. Geralmente é apenas pão — se estiver disponível — azeite e tomilho. Sentamo-nos e comemos, a imaginamos os queijos que costumávamos saborear.
A disponibilidade de comida não é certa. Quando temos leite, eu bebo-o de manhã e imagino-o com aveia e mel. Mas já faz dois meses desde a última vez que bebi leite.
A Realidade
Depois do pequeno-almoço, sento-me sozinha numa cadeira e medito. Os drones e os aviões estão sempre comigo, a distrair-me dos meus pensamentos. Tento escapar para a minha imaginação porque, nela, eu tenho uma vida.
Imagino-me como uma jovem normal de 20 e poucos anos que tem de equilibrar os estudos universitários, uma vida social e um emprego, a lutar pelo sucesso. Talvez tenha um carro.
Mas essa não é minha vida. Tenho a sorte de poder continuar os meus estudos universitários online. Estou no terceiro ano. Usamos cartões SIM para ter acesso à internet. Mas o sinal é mau e temos que usar painéis solares para carregar os nossos telemóveis. A minha família não tem um painel solar, por isso tenho que caminhar até uma zona aqui perto e pagar para usar o de outra pessoa.
Enquanto espero que o meu telefone carregue, vou ao mercado para tentar encontrar comida. É uma caminhada de cerca de 13 quilómetros ou uma boleia numa carroça puxada por um burro. Não há gasolina para carros. Ao longo do caminho, vejo pessoas que se tornaram sem-abrigo nas ruas. Em todos os lugares há tendas feitas de pedaços de pano desgastados que não oferecem proteção contra o calor ou estilhaços.
Há grandes montes de lixo ao redor das tendas, infestados de moscas gigantes. Não há serviços municipais.
O mercado em si é sombrio e lotado de pessoas sem expressão, cada uma carregando a sua própria dor e perda. Cheira a esgoto e está rodeado de casas destruídas. Os preços dispararam. Como não é permitido entrar quase nada em Gaza, os únicos itens disponíveis, e em quantidades limitadas, são alimentos enlatados — e mesmo esses são pouco acessíveis.
Esta é a realidade que tento bloquear, pelo menos por um tempo, enquanto medito. Quando abro os olhos, pergunto: "Onde estou? Por que não estou em casa? Quando voltarei? E se eu voltar, reconhecerei a minha casa no meio dos escombros?"
Já passaram mais de 300 dias desde que isto começou, e ainda não consigo aceitar que Gaza já não existe.
Editado por Eric Reidy.
O The New Humanitarian não é responsável pela exatidão da tradução.
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