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Combater a ignorância, o medo e até o ódio? À Mesa.

Publicado a
15/3/2024

A mesa é uma espécie de ponte entre duas margens que até esse momento nunca se tinham tocado. É possível que já se tivessem avistado, mas é quando se sentam à mesa que se abre milagrosamente um caminho de um lado para o outro lado. 

Foi assim naquele sábado, também. A MEERU desafiou a comunidade católica redentorista do Porto e a comunidade da Mesquita do Porto a visitarem-se mutuamente, no âmbito da Conversa entre um judeu, um muçulmano e um cristão, e assim fizemos. Fomos tremendamente bem recebidos na Mesquita, as crianças foram deixadas totalmente à vontade, e foi uma experiência muito rica ficar a conhecer um pouco da forma como se organiza e como se reza e como se celebra por ali. A Sara e a Marta ficaram particularmente deslumbradas com as palavras e as letras escritas num código que não conhecem e não sabem decifrar. Pegavam num livro atrás do outro para ver se todos estavam escritos assim. Connosco estava também gente da MEERU, entre eles o Omar e a Rafif, dois irmãos sírios de oito anos. Víamos os olhares que as crianças iam trocando entre si, com a vergonha toda pelo meio. Quando chegou a vez de visitarmos a comunidade redentorista do Porto, já a vergonha se dissipara e os quatro corriam juntos por ali. 

Com os adultos as coisas não são assim tão simples, tão imediatas. Reparem, tudo o que aconteceu ali durante aquela tarde foi maravilhoso, foi rico e foi óptimo. Mas, precisamos da mesa para dar o salto para algo mais do que a mera curiosidade. A mesa chegou nessa noite, sentámo-nos por ali ao calhas, sem lugares marcados, e é aí que o milagre começa a acontecer. As crianças já eram as melhores amigas. Ficaram juntos numa mesa só delas e posso já avançar que quando terminou o jantar os pedidos incessantes que eu ouvia das minhas duas filhas eram: porque é que o Omar e a Rafif não podem ir dormir a nossa casa?

Quanto aos adultos, foi à mesa que passámos a ter realmente nome, história, contexto. Foi à mesa que trocámos ideias, também teológicas e ideológicas. Sim, é possível cristãos e muçulmanos, sentados à mesma mesa a conversarem sobre aquilo em que cada um acredita. Fizemos piadas entre nós, partilhámos viagens e experiências, ouvimos com imensa atenção o Khalid a falar sobre Meca… E tenho que parar de enumerar. Mas o que eu gostava mesmo de dizer era isto: a mesa é um milagre que nos aproxima de quem se senta à nossa frente de uma maneira que nada mais consegue. Há qualquer coisa naquele pedaço de madeira estendida que faz com que a certa altura, pessoas que há umas horas nem sequer se conheciam, de religiões diferentes, de cidades diferentes, de clubes diferentes, até estejam a comer leite creme do mesmo prato (e agora estou mesmo a falar dos adultos).

Podemos simplesmente fazer assim? Podemos sentar-nos à mesa seja com quem for e deixar que ela opere o seu milagre? Será possível que um jantar da Sara e da Marta, com 7 e 4 anos, com o Omar e a Rafif, de 8, que levou a muitas perguntas no carro, tenha sido muito mais impactante para elas do que mil conversas abstractas sobre pessoas refugiadas? Sobre a sorte que elas têm por não ter de sair do país delas no meio de uma guerra em direção ao desconhecido? Não é óbvio que agora o distante se fez próximo, o abstracto tem um nome, Omar, Rafif, 8 anos, meninos como elas?

A mesa opera este tipo de milagres. Podemos só sentar-nos, assim, mais vezes à mesa uns com os outros e deixar que eles aconteçam?

Autores
Margarida Ferreira
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