Tragamos à memória a inauguração da escultura “Angels Unawares”, pelo Papa Francisco, a 29 de setembro de 2019, no Domingo em que se celebrava o 105º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado. Feita de bronze e argila, a escultura realizada em tamanho natural foi colocada junto a um dos braços da colunata barroca de Bernini que simbolizam o abraço com que a Igreja-Mãe acolhe em si todos os povos. Retrata um grupo de 140 migrantes e refugiados, provenientes de diferentes contextos culturais e raciais e também de distintos períodos históricos. Com os rostos marcados pelo horror que os levou à fuga, pelo perigo que supôs a travessia e pela ansiedade experimentada quanto ao futuro incerto que os espera. Desta multidão heterogénea de pessoas sobressaem as asas de um anjo, sugerindo uma presença sagrada e protetora no meio delas. O nome da escultura (numa tradução livre significaria algo como anjo escondido) foi inspirado na Carta aos Hebreus "Não vos esqueçais da hospitalidade pois graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjos." “Eu desejei esta obra aqui na Praça de S. Pedro, para que recorde a todos o desafio evangélico do acolhimento”, destacou o Papa Francisco, “que ninguém seja excluído da sociedade, tanto um cidadão residente de longa data como alguém recém-chegado”.
Na homilia desse dia, o Papa Francisco insistia: ‘Devemos ter uma atenção especial para com os estrangeiros, como também para com as viúvas, os órfãos e todos os descartados dos nossos dias […] para com todos os habitantes das periferias existenciais que, juntamente com os migrantes e os refugiados, são vítimas da cultura do descarte. […] Como cristãos, não podemos permanecer indiferentes diante do drama das velhas e novas pobrezas, das solidões mais sombrias, do desprezo e da discriminação de quem não pertence ao “nosso” grupo. Não podemos permanecer insensíveis, com o coração anestesiado, diante da miséria de tantos inocentes. Não podemos não chorar. Não podemos não reagir. Peçamos ao Senhor a graça de chorar, peçamos aquele pranto que, à vista destes pecados, converte o coração.’
Esta incapacidade de chorar mantem milhões de pessoas naquilo que chamamos periferias humanas. Vai-se estendendo como um vírus, numa dinâmica que acaba por ameaçar também os que nos estão mais próximos, gerando pessoas cada vez mais hedonistas e narcisistas, pondo em verdadeiro risco a aprendizagem de amar. Não me afeta, não me interessa, não me diz respeito, não quero saber: a indiferença tornou-se global.
“O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do ‘descartável’, que aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenómeno de exploração e opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’” EG.53
O papel que podemos ter neste recuperar da capacidade de chorar, que tanto preocupa o Papa Francisco desde o início do seu pontificado, é, de facto, único.
Num mundo onde as pontes parecem escassear e as margens estar cada vez mais distantes umas das outras, onde se multiplicam os muros e gradeamentos, precisamos que haja pessoas de bem que não se demitam de navegar nestas águas turbulentas que pretendem separar-nos uns dos outros, tornando-nos a todos estrangeiros. Precisamos que haja quem não se demita de entrar no mar, de ser o barco, a balsa, ainda que rudimentar, capaz de levar a bom porto todos os que atravessam a tempestade, de os fazer chegar a terra firme e de os ajudar a encontrar onde ficar. Precisamos de mostrar ao mundo que é possível chorar de alegria por sentir cada ser humano como irmão.
No entanto, num tempo global de grande descontentamento e dificuldades, torna-se fácil a manipulação dos nossos receios e inseguranças, das nossas “depressões” sociais, levando-nos a acreditar que o medo do futuro que experimentamos e o vazio a que chegámos são consequência desse “inimigo” que chega até nós, não para procurar refúgio e salvar a sua vida, mas para nos invadir. É preciso reconhecer que muitos dos movimentos ‘anti-migrantes’, sob capa de receios humanos, religiosos e económicos, incluem inúmeras pessoas, que se definem honestamente como guiadas por valores morais, que frequentam o culto, que se declaram religiosas com sincera fidelidade.
Como é possível conciliar o que é inconciliável? Como é possível validar o receio humano, religioso ou económico acima da vida e da sorte de quem enxotámos para as periferias, de um refugiado ou migrante? Como é possível terminar a definição de quem somos com um mas, “eu acho que devem ter uma hipótese, mas…”. Será possível renovar a nossa visão da realidade a partir dos valores fundamentais da nossa consciência?
A discriminação, seja ela qual for, gera vítimas e pode tornar-se um hábito. Quando, ao princípio, se vive perto de uma lixeira com um cheiro nauseabundo é impossível não tapar o nariz com um lenço ou evitar algum vómito. Quando, ao princípio, se vive perto de um aeroporto ou linha de comboio, é impossível conseguir abstrair-se do barulho que invade o espaço sem pedir licença e que até nos pode levar ao desespero, dando voltas na cama. Mas, depois de viver durante um tempo considerável nesse lugar, o nosso cérebro desliga. Deixamos de sentir o cheiro, deixamos de ouvir o barulho, e habituamo-nos. Aquilo que era insuportável passa a ser normal. Pior ainda, nem me apercebo de que estou a viver num ambiente nauseante ou ensurdecedor. Da mesma forma, podemos passar de um mero episódio de desvalorização do outro – que reconhecemos e de que nos arrependemos – a uma forma tão regular de o fazer que, sem nos apercebermos, passamos a considerar o outro como um objeto e não como um sujeito, igual em dignidade e direitos, diante de ‘Deus e dos homens’, diante de mim. Simplesmente, deixamos de chorar.
Temos que nos manter vigilantes quando tratamos outros seres humanos como menos humanos do que nós, seja por que razão for. Ninguém pode ficar subterrado pelo peso mortífero de um receio humano, religioso ou económico.
A compaixão a que temos que chegar não significa unicamente que nos identificamos emocionalmente com o sofrimento do outro, mas que nos identificamos afetivamente com o outro que é nosso irmão, carne da minha carne, e que sofre. Não basta reagir emocionalmente, como por instinto, só porque o que acabámos de ouvir, de saber ou de ver nos choca; porque, depois da ‘novidade’, tudo volta à banalidade ou, pior, por estarmos a ser constantemente bombardeados com imagens e números, apodera-se de nós a apatia e a indiferença de quem não acha que deva preocupar-se e agir. No entanto, estas imagens e números continuam a ser imagens e números reais do ‘absurdo’ que tantos continuam a padecer. Quando recebemos uma notícia dolorosa sobre alguém que conhecemos ou de quem somos amigos, todos reagimos imediatamente. Queremos ajudar, queremos fazer-nos presentes, queremos que saibam que podem contar connosco. Estamos em choque! Mas, provavelmente, só os mais próximos – a família e aqueles amigos que são como família – reorientarão as suas vidas para permanecer presentes, acompanhar e responder, com o passar do tempo, acolhendo as alterações que esse “estar aí” provocará nas suas próprias vida. Não se trata, por isso, de reagir à flor da pele, mas de uma decisão da vontade que perdura no tempo, tal como o amor e o exercício do verbo amar.
Cada uma desses milhões de pessoas refugiadas, deslocadas ou traficadas, não é um número para alimentar totais, estatísticas ou percentagens! Cada uma delas é clara e inequivocamente digna. São família. São irmãos nossos!
É desde esta identidade de filhos/irmãos, perene e imutável, que devemos ler tudo o que se escreve, se diz, se decide, sobre estes milhões de pessoas (crianças, adultos, idosos) e ver tudo o que sofrem. Quanto mais esta identidade de filhos/irmãos se for alicerçando no nosso coração, maior será o nosso desejo de que se salvem, de que cheguem a um porto seguro, de que possam refazer as suas vidas.
Nunca será demais deixar-se questionar também pela provocação da parábola do Bom Samaritano, que nos fala da responsabilidade de colocarmos a pergunta certa. A pergunta certa não é quem é o meu próximo, mas de quem é que me fiz próximo. Para isso, o primeiro passo a dar é abrir a porta da nossa casa e sair ao encontro.
Permitam-me contar-vos um momento tipo MEERU APROXIMA na vida de Jesus Lc.14:
Disse Jesus a quem o tinha convidado: «Quando deres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos; não vão eles também convidar-te, por sua vez, e assim retribuir-te. Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. E serás feliz por eles não terem com que te retribuir; ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos.» Ouvindo isto, um dos convidados disse-lhe: «Feliz o que comer no banquete do Reino de Deus!» Ele respondeu-lhe: «Certo homem ia dar um grande banquete e fez muitos convites. À hora do banquete, mandou o seu servo dizer aos convidados: ‘Vinde, já está tudo pronto.’ Mas todos, unanimemente, começaram a esquivar-se. O primeiro disse: ‘Comprei um terreno e preciso de ir vê-lo; peço-te que me dispenses.’ Outro disse: ‘Comprei cinco juntas de bois e tenho de ir experimentá-las; peço-te que me dispenses.’ E outro disse: ‘Casei-me e, por isso, não posso ir.’ O servo regressou e comunicou isto ao seu senhor. Então, o dono da casa, irritado, disse ao servo: ‘Sai imediatamente às praças e às ruas da cidade e traz para aqui os pobres, os estropiados, os cegos e os coxos.’O servo voltou e disse-lhe: ‘Senhor, está feito o que determinaste, e ainda há lugar.’ E o senhor disse ao servo: ‘Sai pelos caminhos e azinhagas e obriga-os a entrar, para que a minha casa fique cheia.’ Pois digo-vos que nenhum daqueles que foram convidados provará do meu banquete.» Terrível pensar que algum de nós possa responder: ‘peço-te que me dispenses’, ‘não posso ir’! Não há desculpas que justifiquem não sair ao encontro dos que fazem parte das periferias existenciais e trazê-los para dentro da cidade. Para encontrar, é preciso sair. Sair do que me prende, sair dos lugares simbólicos. Se repararmos bem, este movimento, que começa por ser de saída, tem ‘um v de volta’! É preciso sair para procurar e, ao encontrar, passamos a receber.
Nestes últimos anos, temos acolhido e caminhado na necessidade de sair, a nível da comunidade civil, Igreja, das congregações religiosas e de grupos de cidadãos comuns. Este movimento era, e é, urgente e necessário para cortar com uma cultura que infetou gravemente a nossa forma de entender a vida, virada para si mesma, incapaz de lidar com a diferença ou de acreditar numa comunhão construída sobre a rocha, que não significa uniformidade, mas harmonia pluriforme.
Neste movimento de rutura, é necessário dar um passo mais para deixar de considerar as periferias humanas, e os que a ela estão subjugados, como algo a temer e a evitar que entrem no nosso espaço seja como for. Um passo que possa, quase por milagre, levar à confiança que elimina obstáculos, inseguranças e receios. Muitas vezes, na nossa vida, basta encontrar a palavra certa para que nos recoloquemos de forma diferente diante das dificuldades e desconfianças. A força da palavra é surpreendente! Influencia a forma como vemos e sentimos o que vivemos e fazemos. A palavra certa é a peça do puzzle que falta para que tudo se encaixe e se perceba finalmente o quadro. Se encontrarmos a palavra certa, acedemos ao quadro.
E a palavra certa é hospitalidade. Sabemos que, para nós, a hospitalidade não pode assumir um caráter meramente humanitário. Com ressonâncias bíblicas desde sempre, a hospitalidade é um substantivo; é mais do que “dar hospedagem”; é um bem maior. Se a ‘composição de lugar’ para o meu coração e para a minha família for a hospitalidade, então as dificuldades, aparentemente inultrapassáveis ou consideradas falsamente como a “voz da sensatez”, esbatem-se! Sair tornar-se-á num simples abrir as portas e deixar entrar. Tudo passará a estar focado em receber na nossa casa o estrangeiro, fazendo-o sentir-se, não tanto uma visita, mas parte da família.
A hospitalidade, não nos podemos esquecer, convive com a possibilidade do seu oposto, a hostilidade. Jesus também a experimentou: “Fui estrangeiro e não me acolhestes.”
É impressionante a hospitalidade praticada no Médio Oriente. Os muçulmanos praticam-na como se fosse algo simples e inerente à condição humana, de forma desmedida e a fundo perdido. Acolho-te na minha casa, protejo-te porque és família, dou-te o melhor que tenho, pelo tempo que precisares.
Creio que, nas nossas culturas ocidentais, o significado de hospitalidade está ainda longe de ser o bíblico*. "Não oprimireis o estrangeiro que permanecer na vossa terra. O estrangeiro residente entre vós será tratado como o natural da terra; amá-lo-eis como a vós mesmos, pois estrangeiros fostes na terra do Egito. Eu sou o SENHOR, vosso Deus*. Também na Carta aos Romanos, S. Paulo escreve: “esmerai-vos na prática da hospitalidade”. O termo grego traduzido para português como “hospitalidade” é philoxenia, uma combinação de duas palavras: philos, que significa "amar alguém como a um amigo ou irmão", e xenos, que significa estrangeiro (estranho) ou imigrante (o estrangeiro residente). Embora geralmente traduzida por "hospitalidade", a philoxenia significa o dispensar de afeto aos estrangeiros, "amar o estranho ou o imigrante como se fosse o seu próprio amigo ou irmão". Isto significa que se deve dar aos estranhos o mesmo tipo de amor com o qual amamos a amigos e familiares. O texto da Carta aos Romanos é ainda mais incisivo porque afirma, literalmente, "esmerai-vos na hospitalidade", ou seja, a hospitalidade não é algo esporádico, como receber visitas, mas um ato constante, que se pratica sem olhar a quem.
Reconhecemos o dom da hospitalidade quando nos sentimos privilegiados em receber na nossa casa e abrimos o nosso lar, de bom agrado, a um hóspede. Ou se, ao não ter como hospedar na própria casa, procuramos um outro meio para hospedar essa pessoa; reconhecemos o dom da hospitalidade quando temos facilidade em fazer com que desconhecidos se sintam parte do nosso grupo; reconhecemos o dom da hospitalidade quando sentimos preocupação por aqueles que estão longe dos seus familiares, procurando estar próximos e suprir possíveis necessidades; reconhecemos o dom da hospitalidade naqueles momentos em que nos preocupamos muito mais com o hóspede do que connosco mesmos; reconhecemos o dom da hospitalidade nas opções políticas que fazemos.
Terminemos com uma citação do Papa Francisco no seu primeiro documento Evangelii Gaudium: “Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A Terra é a nossa casa comum, e todos somos irmãos” [183]. Pequenos, mas fortes no amor, todos nós somos chamados a cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que vivemos [216].
Fica então um desafio: ler a última encíclica do Papa Francisco, escrita para crentes e não crentes - Fratelli Tutti.
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Texto escrito pela Irmã Irene Guia, no âmbito de um evento APROXIMA TALKS, em fevereiro de 2021.