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Ainda há fantasmas em Cabo Delgado?

Publicado a
18/1/2022

“Estou feliz por estar aqui porque não vai acontecer essa dificuldade outra vez”. Estas são palavras de Safia Vicente em entrevista ao Público. A menina de onze anos fala de Silva Macua, província moçambicana situada a 80 km de Pemba, capital da província de Cabo Delgado e uma das zonas que abriga os milhares de deslocados do conflito no Norte de Moçambique.

Garante que dorme bem e não pensa nos terroristas islâmicos do Al-Shahab, dá-se bem com os vizinhos e brinca muito com as amigas que fez naquela província.

Safia é uma das mais de 336 mil crianças deslocadas desde o conflito em Cabo Delgado. O director da Save the Children em Moçambique, Chance Briggs, afirma que “os responsáveis pela violência em Cabo Delgado estão a usar tácticas aberrantes que aterrorizam as crianças”. A organização denunciou a 9 de Junho o rapto de cerca de 50 crianças durante o ano passado por grupos jihadistas em Cabo Delgado.

A ONG já denunciara em Março casos de crianças até aos 11 anos decapitadas pelos jihadistas responsáveis por dezenas de ataques nos últimos meses em Cabo Delgado, que também causaram a fuga de mais de 800.000 pessoas. Pelo menos 51 crianças, na maioria raparigas, foram raptadas nos últimos doze meses.

É o caso de Nordino Amade. Ao coordenador da Helpo em Moçambique, Carlos Almeida, conta que durante um ataque os terroristas chegaram a sua casa, raptaram duas sobrinhas que viviam com ele, e queimaram a casa. Nordino fugiu com a mulher e nove filhos.

Os números não mentem em relação à gravidade do conflito em Cabo Delgado. Kwiriwi Fonseca, porta-voz da diocese de Pemba afirma que a crise aberta pelo ataque a Palma levou à deslocação de 750 mil pessoas, que "pedem comida, abrigo, uniformes escolares e material de higiene.” Os cálculos indicam que Cabo Delgado necessita de "cerca 300 milhões de dólares” para se reconstruir, “mas só se conseguiram 25 milhões de dólares".

O jornal moçambicano Domingo fazia as contas, em meados de Julho, aos estragos provocados na economia: contando os danos do que foi incendiado, vandalizado e saqueado, somava a perda de 400 empresas e 65 empreendimentos turísticos nos distritos de Quissanga, Macomia, ilha de Ibo, Palma e Metuge. Já quanto às vítimas, num número que pecará, provavelmente, por defeito, as autoridades moçambicanas estimam mais de 2800 mortos. Segundo a HRW “mais de 88.000 pessoas foram deslocadas do distrito de Palma, após o ataque da Ansar al-Sunna, em 24 de Março de 2021”.

O ataque de 24 de Março de 2021 foi o momento em que o mundo despertou para o conflito. Nesse dia começava a Batalha de Palma, um combate pelo controlo da cidade de Palma, envolvendo as Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), outras forças de segurança moçambicanas e empreiteiros militares privados, e terroristas islâmicos supostamente associados ao Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL). Os rebeldes decapitaram civis de vilas próximas, bem como pessoas que tentaram fugir da cidade.

A identidade exata dos insurgentes em Palma não era clara. Um rebelde identificava-se como membro do al-Shabab, um nome local para o grupo Ansar al-Sunna. No entanto, outros relatórios afirmavam que os agressores tinham sido identificados como pertencentes ao Estado Islâmico na África Central (EI-PAC).

Estima-se que 35 mil civis tenham sido deslocados durante a batalha, buscando refúgio nas cidades vizinhas.

Este foi o culminar de um conflito que não começou nesse dia. Cabo Delgado é, desde 2017, alvo de ataques armados ligados a grupos jihadistas, os Al-Shahab.

Wikimedia Commons F. Mira

Como chegamos aqui?

Em Fevereiro de 2021, Mia Couto puxava da sua condição de biólogo com trabalho de campo em Cabo Delgado e, na Newsletter do projeto jornalístico Fumaça, afirmava que a presença do Estado naquela região do norte de Moçambique era inexistente. Camponeses, pescadores e caçadores de Cabo Delgado não se sentiam parte de Moçambique.

Mia Couto terminava a newsletter assim: “Há fantasmas antigos por debaixo de pedras. A violência em Cabo Delgado tem dimensões históricas, sociais, religiosas que escapam a uma resposta fácil e total.”

Historicamente, Cabo Delgado sempre esteve afastado da administração moçambicana. Funcionou como parte orgânica de um velho império Swahili que, durante séculos, respondeu perante o sultão de Zanzibar.

Dizia Mia Couto que era raro “ver uma autoridade que representasse o Estado”.

“As pessoas raramente falavam português, não escutavam nem as rádios e muito menos as televisões de Moçambique. Sintonizavam as estações tanzanianas”, escrevia.

Mas o panorama mudou. Cabo Delgado passou a ser abrigo de negócios obscuros como venda de pedras preciosas, droga e pessoas. Os negócios clandestinos não beneficiavam a maioria da população e o Estado quis impor-se.

À fome do Estado juntou-se a vontade de comer de empresas estrangeiras. A consequência desta chegada foi a obrigação imposta aos camponeses de pagar impostos e se inserirem no chamado Estado moderno.

Paralelo a este rebuliço comercial e estatal que se fazia sentir em Cabo Delgado outro fator entrava neste cocktail explosivo: a religião.

Jovens moçambicanos que tinham ido estudar para a Arábia Saudita e para o Sudão regressavam como mensageiros de uma mensagem radical, afirmando que o islamismo estabelecido em Cabo Delgado há séculos não era puro.

O que foi feito depois do ataque de 24 de março de 2021?

O governo moçambicano impôs restrições à deslocação de milhares de pessoas em fuga da guerra, situação que levou a Human Rights Watch (HRW) a pronunciar-se e a apelar ao governo moçambicano para ajudar os civis a deslocarem-se para áreas mais seguras, civis presos pelos combates na província de Cabo Delgado.

Incapaz de gerir o conflito, o presidente moçambicano Filipe Nyusi foi forçado a recorrer a ajuda externa, também devido à pressão por parte das empresas de gás natural presentes em Cabo Delgado que exigiram 3000 homens no terreno.

Filipe Nyusi pediu ajuda ao Quénia, mas fracassou. O Presidente queniano, Uhuru Kenyatta, sentiu que faltava clareza sobre quais eram os objectivos reais da operação.

E assim virou-se para o Ruanda. Em Julho de 2021, cerca de mil militares ruandeses, que estarão a ser financiados por França, foram destacados para Cabo Delgado.

Além do Ruanda, outros países enviaram tropas para o conflito. A Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) também enviou um destacamento militar para a província. Angola enviou 20 assessores militares, o Botswana enviou 296 soldados,  e o Parlamento sul-africano aprovou o envio de 1495 soldados sul-africanos.

A União Europeia destacou a Missão de Formação Militar da União Europeia, que terá um mandado inicial de dois anos e cujo objetivo é treinar e formar as  Forças Armadas de Moçambique.

Marcelo Rebelo de Sousa ao doar o Prémio José Aparecido de Oliveira, que recebeu da CPLP, a organizações não-governamentais que operam em Cabo Delgado, fez a sua pequena parte para que se voltasse a olhar para estas vidas interrompidas. Antes, tinha sido o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação português a pedir o envolvimento de outros países da União Europeia e fora da Europa no apoio a Moçambique.

Ainda assim há números que assustam: as Nações Unidas dão conta de que, por causa do conflito na região moçambicana, cerca de 50 mil crianças estão actualmente em alojamentos temporários e necessitadas de bens essenciais, 51 crianças foram raptadas no último ano nas zonas de conflito, 2852 pessoas morreram, 900 mil pessoas estão em situação de emergência alimentar e mais de 1,3 milhões de pessoas foram afectadas pela violência.

Como afastar os fantasmas de Cabo Delgado?

Dominik Stillhart, diretor de operações da Cruz Vermelha em Moçambique, diz à TSF que “nesta altura é muito importante que organizações como a Cruz Vermelha, ajudem na prestação de serviços essenciais, sobretudo de saúde, de melhoria das condições sanitárias assim como de acesso a água potável"

Falta quase tudo em Cabo Delgado. Não há água potável, não há saneamento, o que já provocou mais de três mil casos de cólera de acordo com a Organização Mundial de Saúde. A pressão exercida pela existência de mais de 800 mil deslocados levou à rutura dos serviços de saúde. Tudo isto reduziu ao mínimo a capacidade para responder a doenças que possam surgir.

Alguns organismos internacionais têm alertado para o subfinanciamento dos programas de ajuda humanitária, que não cobre mais do que 15% das necessidades reais dos deslocados, do mal já instalado da subnutrição e da emergência de fome, que sem mais dinheiro dos doadores se vai instalar, em breve.

Em Montepuez, no oeste de Cabo Delgado, já está a ser construída uma nova rede de abastecimento de água. A Cruz Vermelha está também a reabilitar e a construir sete novos centros de saúde em alguns dos distritos que receberam mais deslocados. Apesar da Cruz Vermelha acreditar que a região está mais segura há o desafio agora é o regresso a casa dos mais de 800 mil deslocados.  

Aua Abdul, à organização VOA afirma “Mocímboa da Praia, nem em princípio do ano (2022) será habitável”, a analisar pela destruição do local que esteve por mais de um ano nas mãos dos insurgentes. Aua Abdul é uma deslocada que vive numa barraca improvisada no campo de Metuge, perto da capital, Pemba.

“As autoridades estão a fazer um registo para o regresso, mas o registo é só para nos encorajar”, porque não há condições para o regresso, acrescentou Aua.

Um outro deslocado de Muidumbe, Salimo Henrique, que escapou de um ataque na sede distrital, em Abril de 2019, disse que se reconciliou com o trauma, mas sente que a segurança não está restabelecida para uma vida com tranquilidade.

“Não tenho a certeza se devo regressar. É que os novos ataques dão medo, estão a baralhar as pessoas e isso é complicado” diz.

Henrique acedeu ao pedido de registo do governo para aqueles que querem regressar à origem mas os novos ataques de Mueda e Quissanga trouxeram velhos fantasmas.

Será possível, algum dia, levantar-se mais pedras sem medos de lá se encontrar fantasmas?

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Este é o segundo episódio escrito, narrado e interpretado em língua gestual no âmbito do projeto Observatório. Documentar a Urgência.

O texto foi escrito pelo Emanuel Silva e narrado pelo João Neves.
A interpretação em língua gestual foi feita pela
Catarina Pereira.
O vídeo foi compilado pelo
Pedro Amaro Santos.
A música foi comprada na plataforma:
epidemicsound.com
A iniciativa é da MEERU | Abrir Caminho, apoiada pelo
IPDJ - Instituto Português do Desporto e Juventude, I.P.

Autores
Emanuel Silva
Autor
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