As necessidades de ajuda humanitária continuam por satisfazer nestes 10 pontos críticos (e nenhum deles é a Ucrânia).
Em 2023, a fixação míope com a guerra na Ucrânia torna ainda mais importante do que o habitual lembrar as muitas outras crises – de menor importância geopolítica – que são facilmente esquecidas pela comunicação social e negligenciadas pelos que prestam ajuda.
Segundo os números mais recentes, cerca de 339 milhões de pessoas em 69 países precisarão de ajuda humanitária em 2023, tendo a ONU apelado a um aumento de 25% nos fundos face a 2022, ano em que foi alcançado apenas metade do valor.
Dezenas de milhões de pessoas nestes países já vivem sem comida suficiente e em perigo extremo. As restrições de acesso levam a que algumas destas pessoas não possam ser alcançadas. Além disso, o hiato entre as necessidades existentes e o financiamento fará com que muitos outros fiquem sem assistência.
O Corno de África: Seca e conflitos misturam-se
Números: Mais de 36 milhões de pessoas afetadas pela seca na Etiópia, Quênia e Somália.
O Corno da África vive a seca mais severa dos últimos 40 anos e a situação só parece piorar. A Somália é o país mais afetado, estimando-se que, entre abril e junho, 700 000 pessoas vivam com fome e uma escassez catastrófica de alimentos. No total, 8,3 milhões deverão passar fome – o resultado de cinco estações consecutivas sem chuva, o aumento do preço dos alimentos e uma diminuição da ajuda monetária. Estima-se que um grande número de pessoas já tenha morrido e, pelo menos, três milhões de cabeças de gado se tenham perdido. A região também enfrentam vários conflitos: o grupo Al-Shabab está a lutar contra o governo da Somália, limitando o acesso a ajuda nas áreas sob o seu controlo; ao mesmo tempo, na vizinha Etiópia, um acordo de paz entre a administração federal e as forças Tigrayan ainda tem muitos obstáculos para superar.
Síria: necessidades recorde à medida que as atenções diminuem
Números: 6,8 milhões de deslocados internos. 15,3 milhões de pessoas necessitadas.
Passados 11 anos de guerra, a Síria saiu das manchetes dos jornais. No entanto, a ONU diz que, este ano, há mais pessoas do que nunca – 15,3 milhões – a precisar de algum tipo de ajuda. Cerca de 6,8 milhões de sírios continuam deslocados internamente (o maior número no mundo), vivendo muitos na zona noroeste controlada pelos rebeldes, onde a ajuda está condicionada a uma frágil Resolução do Conselho de Segurança da ONU. Grande parte das mais recentes necessidades resultam de uma crise económica incapacitante, que provocou a subida dos preços dos alimentos em 532% entre 2020 e 2022 e, consequentemente, níveis recorde de fome. A severa escassez de água contribuiu para um surto de cólera e um agravamento da crise de combustível. E a guerra ainda não acabou. Os ataques aéreos russos e do governo de Bashar Al-Assad ainda atingem o noroeste controlado pelos rebeldes, enquanto há ataques aéreos turcos no nordeste, sem mencionar a crescente ameaça de mais uma invasão liderada por Ancara.
República Democrática do Congo: O retorno da M23
Números: 27 milhões (cerca de um quarto da população) precisam de ajuda humanitária.
O retorno do grupo armado M23, há muito adormecido, agravou as necessidades humanitárias no leste da República Democrática do Congo e desencadeou uma crise geopolítica que pode despoletar um conflito maior na região dos Grandes Lagos. O grupo rebelde, apoiado pelo Ruanda, prometeu retirar-se das posições conquistadas nos últimos meses, mas a situação continua volátil e centenas de milhares de deslocados precisam de apoio urgente. Uma nova força militar da África Oriental chegou em missão de paz ao leste da RDC para combater o M23, mas a população está preocupada com esta intervenção externa. Ao mesmo tempo, os capacetes azuis da ONU enfrentam a revolta da população pela sua aparente inação. A atenção dada ao M23 desviou o foco de outros grupos insurgentes, incluindo as Forças Democráticas Aliadas islâmicas e as milícias da Cooperativa para o Desenvolvimento do Congo, ativa no conflito de Ituri. Em 2023, espera-se mais destruição e um aumento da instabilidade devido às eleições presidenciais programadas.
Myanmar: um conflito esquecido, mas em crescimento
Números: 1,3 milhões de deslocados internos. 130 000 Rohingya em campos de internamento.
Na primeira semana de janeiro, os combates no estado de Karen deslocaram mais de 10 000 pessoas. Acontecimentos como este tornaram-se frequentes no Myanmar, onde os ataques indiscriminados do manifestamente cruel Tatmadaw (forças armadas) causaram mais de 1,1 milhão de deslocados desde que os militares assumiram o poder, no golpe de fevereiro de 2021. Mesmo com milhares de mortos e dezenas de milhares de casas destruídas, o Myanmar tornou-se em grande parte uma crise esquecida, levando a uma resistência civil abandonada, a lutar por conta própria. Com o governo praticamente inoperacional e a economia em queda livre, as necessidades humanitárias tornam-se cada vez mais terríveis.
Haiti: necessidades crescentes num vazio de segurança
Números: 5,2 milhões (quase metade da população) precisam de ajuda alimentar.
O Haiti está lutar contra uma série de crises sobrepostas – fome, violência extrema de gangues, cólera – e a situação poderá piorar em vez de melhorar. Janeiro começou com uma realidade preocupante. O país caribenho já não tem qualquer representanter eleito. Ariel Henry tem vindo a governar por decreto desde o assassinato do presidente Jovenel Moïsem em 2021. Não é provável que haja novas eleições até que a violência desenfreada dos gangues diminua. Entretanto, nem os haitianos, nem a comunidade internacional conseguem chegar a acordo relativamente com uma possível intervenção armada estrangeira para restaurar a ordem. O nível da necessidade humanitária é alarmante. Cerca de 19 000 haitianos estão à beira da fome. A cólera já matou mais de 457 pessoas e há 22 500 casos suspeitos. Mais de 155 000 pessoas foram deslocadas, devido sobretudo à violência dos gangues. Embora o Haiti tenha mais de 14 000 polícias, o número de membros de gangues e de armas ultrapassa-os. Os gangues controlam dois terços da capital.
O Sahel: crescem as insurreições jihadistas
Números: 14,4 milhões de pessoas necessitadas no Burkina Faso, Mali, Níger. 2,3 milhões de deslocados internos; mais de 7 000 escolas não estão a funcionar.
Em 2022, as mortes de civis e as necessidades humanitárias atingiram novos recordes no Burkina Faso e no Mali. E os indicadores podem piorar novamente em 2023, à medida que os jihadistas expandem o seu território na região. No Burkina Faso, dois golpes militares em 12 meses geraram instabilidade. Enquanto a França encerrava a sua missão impopular no Mali, os mercenários do Grupo Wagner encontravam-se envolvidos em abusos hediondos. No Níger, a situação é ligeiramente melhor (o governo expressou vontade de conversar com os jihadistas), mas os militantes ainda estão bem entrincheirados. Algumas comunidades da linha da frente do Sahel lançaram os seus próprios diálogos com os jihadistas para tentar diminuir a violência, mas estes pactos revelaram-se incapazes de interromper a espiral descendente. Os jihadistas estão a espalhar-se para o sul e a atacar os países costeiros, incluindo o Benin, a Costa do Marfim e o Togo. Uma resposta militarizada poderia agravar a situação.
Afeganistão: cortes na ajuda humanitária, fome crescente e mulheres em risco
Números: 28,3 milhões de pessoas (dois terços da população) precisam de ajuda.
Embora a tomada do poder pelos Talibã, em agosto de 2021, tenha posto fim a um conflito agudo, esta levou a uma crise humanitária cada vez mais grave. Antes da tomada de posse, três quartos do orçamento nacional provinham de doadores estrangeiros. Devastada pela falta de apoio estrangeiro, a economia afegã sofreu ainda mais em 2022, quando a invasão russa à Ucrânia aumentou os preços globais dos alimentos. Prevê-se que mais de 20 milhões de pessoas enfrentem fome aguda até março, enquanto mais de 3 milhões de crianças com menos de 5 anos sofrem de desnutrição aguda. Apesar dos riscos, os afegãos, desesperados por trabalho, têm atravessado as fronteiras em massa, tendo só o Irão recebido mais de um milhão de pessoas. A recente proibição de funcionárias mulheres em ONGs poderá levar 6 milhões de pessoas à fome. Com o governo talibã diplomaticamente isolado, tem sido difícil para as agências humanitárias fazer negociações.
Israel/Palestina: um conflito ingovernável cada vez mais mortífero
Números: 2,1 milhões de pessoas precisam de ajuda; 61% vivem em Gaza.
O ano de 2022 foi, nas últimas décadas, o ano mais mortífero para os palestinianos na Cisjordânia ocupada, incluindo Jerusalém Oriental, tendo as forças israelitas provocado a morte de 146 palestinianos. Muitas destas mortes ocorreram durante ataques regulares do exército, que começaram após uma onda de ataques palestinianos que levaram à morte de 19 pessoas dentro de Israel e na Cisjordânia, entre março e maio. Com o início de 2023, não há sinal de que essa onda de violência, que incluiu um aumento nos ataques a colonos e vários dias de disparos de mísseis de Gaza e ataques aéreos israelitas, diminue. Na verdade, Israel acabou de empossar o governo mais de extrema-direita de todos os tempos, o que provavelmente exacerbará as políticas discriminatórias e inflamará as tensões. Mesmo que não haja uma grande mudança nas relações com Gaza, que está bloqueada há 15 anos, para os seus 2,1 milhões de residentes isto significa mais do mesmo: pobreza generalizada, dependência de ajuda humanitária e um ciclo vicioso de guerra, tréguas e reconstrução.
Venezuela: uma crise em fluxo à medida que as políticas de fronteira mudam e a xenofobia cresce
Números: cerca de 7 milhões de pessoas na Venezuela (uma em cada quatro) precisam de ajuda, assim como a maioria dos 5,96 milhões de refugiados e migrantes na região.
2023 parece vir a ser um ano dinâmico para os cerca de 13 milhões de venezuelanos que precisam de ajuda de emergência dentro e fora do país. O ano de 2022 viu os números de pessoas que se dirigem para a fronteira sul dos EUA dispararem, muitos em rotas perigosas. A recente mudança na política de imigração dos EUA irá provavelmente reverter esta tendência em 2023, deixando milhares de pessoas presas no México e muitas outras a lutar para construir novas vidas nos países de acolhimento mais próximos de casa, onde duras realidades económicas estão a fazer com que seja cada vez mais difícil encontrar trabalho e a promover os discursos xenófobos. Melhorar as relações entre o novo presidente colombiano Gustavo Petro e o seu homólogo venezuelano, Nicolás Maduro, pode render dividendos para reduzir os perigos ao atravessar a fronteira. Além disso, o aliviar das sanções dos EUA pode melhorar a situação na Venezuela, onde muitos permanecem reféns da estagnação económica, da escassez de alimentos e de combustível e de um sistema de saúde destruído. Algumas pessoas refugiadas estão a regressar, mas o futuro em casa continua difícil e incerto.
Sudão do Sul: desmascarando a 'paz' e inundações em massa
Números: 9,4 milhões precisam de ajuda (76% da população). 2,2 milhões de deslocados internos; 2,3 milhões de refugiados.
O presidente Salva Kiir e o seu rival de longa data, o vice-presidente Riek Machar, têm tentando promover uma imagem de unidade nacional e de reconciliação desde que formaram um governo de unidade, em 2020. Mas, à medida que as elites rivais e as injustiças locais por resolver produzem conflitos em larga escala nas zonas rurais, essa ideia está a tornar-se cada vez mais difícil de vender. Os especialistas dizem que o acordo de paz falhado piorou a situação, mas esse acordo continua a ser o único jogo real para a comunidade internacional. Mais conflitos parecem inevitáveis em 2023, sendo a situação no estado do Alto Nilo particularmente preocupante. O impacto de quatro anos consecutivos de grandes cheias também se sentirá. A fome atinge níveis nunca antes vistos, nem mesmo durante a devastadora guerra civil de 2013-2018.
Este artigo é uma tradução da MEERU da publicação do The New Humanitarian “Why these 10 humanitarian crises demand your attention now”.