— Este artigo foi publicado originalmente pelo 7 Margens.
Os cristãos celebraram a Semana Santa de 2024 enquanto os muçulmanos viviam o Ramadão, uma coincidência rara pelas diferenças nos calendários que regem essas celebrações. Em Portugal, um país onde 80,2% da população se considera católica, segundo os censos de 2021 do Instituto Nacional de Estatística (INE), esses dias foram marcados por uma variedade de missas, procissões e comércio cheios de ovos de chocolate e coelhinhos da Páscoa. No entanto, 5,4% da população que se considera parte de outra comunidade religiosa celebrou esses dias com rituais próprios da sua tradição. Além disso, 9,73% da população, composta por pessoas migrantes, segundo dados fornecidos da ONU em 2020, adotou práticas próprias do seu país de origem. Nadège, Ilham, Mohammed, Safaa, Ghufran e Zakarya pertencem a este último grupo de pessoas. Todos concordam no mesmo ponto: Portugal permite-lhes viver a sua fé em liberdade, mas ainda há muitos aspetos que poderiam melhorar a sua experiência religiosa no país.
Celebrações em liberdade e harmonia, seguindo as tradições do país de origem.
Nadège, uma mulher refugiada originária de Bafoussam, uma cidade da região ocidental dos Camarões, celebrou a última Semana Santa como qualquer outro português católico. Assistiu à missa do Domingo de Ramos, comprou ovos de chocolate e partilhou um típico almoço de Domingo da Ressurreição com os seus filhos. Acrescentou à festividade aquele toque singular do seu país de origem. “Eu celebrei a festa da Páscoa de uma outra forma africana”, afirma, em francês, com um sorriso, e argumenta que o diálogo foi fundamental: “Conversámos muito, falámos sobre as festas religiosas.” Essas reflexões cruzaram-se com longos passeios pela cidade de Braga, onde reside temporariamente, enquanto constrói sua nova casa com a ajuda dos voluntários do Projeto Reconstruir. “Foi bom”, conclui com olhar saudoso, ao lembrar os dias da Semana Santa.
Safaa, uma mulher muçulmana natural da Síria, celebrou o último Ramadão “ao mais puro estilo sírio”. Safaa vive em Barcelos com o marido e os dois filhos. Juntos participaram numa celebração onde crianças que tinham memorizado um versículo do Alcorão, o recitaram em público e receberam presentes. “Havia muitas crianças! E para mim é muito importante que o Omar e a Rafif (os meus filhos) sintam que não são os únicos, que há outras crianças muçulmanas”, explica a mulher com um português exemplar, depois de referir que a situação na escola que as crianças frequentam é diferente, já que não têm colegas da mesma tradição religiosa. Apesar disso, Safaa ressalta: “Cada vez há mais famílias com as quais nos identificamos e temos práticas em comum”. Isto enche-a de satisfação, porque lhe permite transmitir aos filhos experiências semelhantes às que ela viveu no seu país de origem, embora reconheça que nunca poderão ser exatamente as mesmas. “Eles nunca vão sentir o que eu estou a sentir agora de saudades, de falta de vivências. Eles agora estão a construir memórias diferentes das minhas e eu tento fazer o mesmo”, diz, com um sentimento de nostalgia.
Ilham e Mohammed, um casal de muçulmanos marroquinos que vive em Vila Nova de Gaia com os dois filhos, celebraram o Ramadão com o mesmo entusiasmo que na sua terra natal. Em casa, o espírito do jejum e da oração ganharam vida a cada dia, criando uma ponte que transcende as fronteiras geográficas e une o passado com o presente. Asseguram que a sociedade portuguesa lhes permite celebrar as suas festividades num ambiente de respeito e harmonia, algo que também sentem Ghufran e Zakarya, um jovem casal sírio muçulmano que reside em Braga com o filho. Descrevem os dias do Ramadão em Portugal como “belos” e argumentam que puderam praticar a sua fé com muita liberdade.
A escassez de mesquitas, a falta de feriados e o idioma das missas são os principais obstáculos. No entanto, a comunidade muçulmana em Portugal, que representa 0,4% da população segundo o INE, enfrenta desafios significativos na hora de celebrar o seu mês sagrado. Entre os mais prementes, está a dificuldade na realização comunitária das orações em locais de culto, um pilar fundamental das celebrações religiosas do islão. Com voz serena, mas firme, Safaa diz que a distância entre a sua casa e a mesquita a impediu de chegar a tempo para a oração da alvorada durante o Ramadão, comenta, sublinhando a importância de cumprir com os horários da oração. Nas suas palavras ressoa a perseverança de um compromisso espiritual que se vê desafiado por barreiras físicas e que transforma cada viagem para o local de culto num ato de fé.
Por isso, destaca a “inexistência das mesquitas” no país e os horários limitados que estas oferecem para rezar: “A mesquita não abre o dia todo, abre só durante cinco ou dez minutos para fazer a oração e depois fecha”, comenta, com uma mistura de resignação e frustração. Ilham compartilha desta preocupação e acrescenta que “nos dias de festa e nas sextas-feiras, todos os muçulmanos vão à mesquita para orar e é preciso esperar para fazer a oração” devido ao facto de habitualmente serem “um pouco pequenas”. A dificuldade para aceder aos espaços sagrados desenha um panorama onde a oração se adapta às limitações do tempo e do espaço e onde a fé persiste apesar dos obstáculos. Para facilitar a oração, Safaa e Ilham propõem ampliar o número de locais de culto, embora reconheçam que tal poderá requerer uma intervenção governamental. “A última resposta terá de vir do Governo português, que deve cuidar dessas questões”, aponta Ilham num apelo à ação para melhorar as condições de prática religiosa em Portugal.
Outro obstáculo significativo é a ausência de feriados para as festividades muçulmanas, o que dificulta seguir as práticas fundamentais. A necessidade de conciliar essas tradições, como o jejum durante o Ramadão, com as exigências laborais ou educativas gera preocupações entre os membros da comunidade. Ghufran, por exemplo, expressa a saudade de poder realizar as cinco orações diárias, como fazia no seu país, uma prática que se complica no contexto de horários e responsabilidades quotidianas em Portugal. Safaa acrescenta que a insuficiente informação sobre as tradições muçulmanas faz com que as instituições sejam pouco flexíveis para se ajustarem às necessidades do mês sagrado.
Compreender os atos religiosos em língua portuguesa é outra das grandes dificuldades. “Não compreendo muito bem a língua quando vou à igreja, mesmo quando o padre faz a pregação e não consigo ler a Bíblia em português”, aponta Nadège com um tom de voz tímido, e acrescenta: “Quando não compreendo, fico um pouco confusa.” A barreira linguística entre pessoas locais e pessoas migrantes também parece dificultar o diálogo e, portanto, a compreensão entre as diferentes tradições religiosas. Ghufran reconhece que a sua falta de fluência no português dificulta a possibilidade de partilhar com os outros “o que é a sua experiência de fé e explicá-la às pessoas para que não tenham ideias equivocadas”.
“Os preconceitos são a primeira coisa. Porque há pessoas que olham para mim, por exemplo, mas têm receio de falar comigo, porque têm um preconceito de que eu pertenço a um grupo muito fechado e não posso falar com elas”, afirma Safaa, acrescentando que a percepção errada sobre a sua comunidade religiosa cria frequentemente barreiras invisíveis na interação com a comunidade local. Ghufran também sentiu esse olhar curioso durante os dias de Ramadão. Argumenta que enquanto estes são dias rotineiros para os locais, para a comunidade muçulmana são momentos especiais e significativos. “Vamos um pouco tímidos porque nos vestimos com roupas e muita maquiagem, todo chique, e estamos na rua como se fôssemos a um casamento”, argumenta entre risos, destacando as diferenças culturais que muitas vezes despertam mal-entendidos na vida quotidiana em Portugal. “Há pessoas que estão erradas sobre o islão e há muçulmanos que estão errados sobre os cristãos”, acrescenta Mohammed.
Para responder a este desafio, a comunidade migrante propõe a participação ativa em encontros de diálogo intercultural e inter-religioso como “Um muçulmano, um cristão e um judeu entram numa porta”, iniciativa organizada pela MEERU | Abrir Caminho e pelo Observatório Blanquerna de Comunicação, Religião e Cultura, com o apoio da Network for Dialogue do KAICIID, no âmbito do projeto “Bridges of Faith”. Coincidindo com o Dia Internacional da Fraternidade Humana de 2024, um judeu, um cristão e um muçulmano sentaram-se à volta da mesma mesa para conversar sobre sonhos comuns, as diferenças nas suas tradições religiosas e os desafios que enfrentam as suas comunidades em Portugal. A iniciativa teve lugar no Porto, no dia 4 de fevereiro.
Encontros como este são necessários para “conversar, explicar, evitar muros entre religiões”, valoriza Mohammed, e argumenta: “Se esclarecermos as coisas, podemos estar num bom caminho.” Ilham, por sua vez, considera que esses encontros são “positivos para as próximas gerações”.
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Este artigo foi escrito no âmbito do projeto ‘Bridges of Faith’, promovido pela MEERU I Abrir Caminho e o Observatorio Blanquerna de Comunicación, Religión y Cultura com o apoio do KAICIID e a parceria do 7 Margens.