A crise afegã de décadas, que leva hoje milhares de pessoas a fugir do país todos os dias, não é igualitária. As imagens da tomada talibã da cidade capital de Cabul, com as imagens de mulheres em montras a serem pintadas por cima, a substituição de pivots televisivas, as sessões de exercício de militares talibã no ginásio presidencial, são o retrato da queda de um ideal civilizacional urbano de importação europeia que nunca tinha chegado à totalidade do território afegão.
No Afeganistão, só 31% da população tem a casa ligada à rede de eletricidade nacional. Em Cabul, são 89%. Em sete províncias, o valor é tão baixo que se arredonda para zero. Em Cabul, 55% das pessoas sabem ler e escrever. Em mais de metade das 34 províncias afegãs, não chega a um terço da população. Em Cabul, a percentagem da população sem dinheiro para comida é de 28%. Em Daykundi, que mal tem estradas que a liguem ao resto do país, 94%.
Estas assimetrias continuam: no acesso a água, a internet, a habitação, a trabalho, a proteção. Juntando os dados, ilustra-se a gravidade de uma falha central do discurso mediático e diplomático sobre o Afeganistão: tendemos a analisar um país cuja população é 75% rural a partir de uma província-capital 85% urbana. Quando se fala nos 2,2 milhões de refugiados afegãos fora do país, ou dos 3,5 milhões de deslocados dentro do Afeganistão, fala-se largamente não de uma população expulsa de centros urbanos em que possuíam certa estabilidade económica e mantinham alguma qualidade de vida, mas de comunidades já pobres e abandonadas quer pelos próprios governantes quer pelos programas económicos de forças estrangeiras ocupantes.
É uma dinâmica de há muito. Foi o Reino Unido, durante a série de disputas que manteve com o Império Russo durante o século XIX na Ásia Central, que instituiu no Afeganistão um proto-governo centralizado. A sucessão de invasões britânicas e soviéticas que definiram as fronteiras do Afeganistão moderno, garantiram também que em 1880 a liderança do país ficava nas mãos de um déspota violento, Abdul Rahman Khan, disposto a tornar o país um protetorado britânico, enquanto construía a partir de Cabul um sistema legal e militar altamente centralizado e baseado num estado policial capaz de suprimir as tentativas de rebelião das tribos afegãs que se viam roubadas da soberania e influência em nome de uma pretensa unidade nacional.
A independência afegã de 1919, e a constituição de 1923, já com Amanullah Khan no poder, trouxeram consigo ímpetos reformistas abundantemente citados: a educação primária tornou-se obrigatória, em escolas sem distinção de género; eliminou-se a obrigatoriedade do uso da burqa para as mulheres; aboliu-se a escravatura em todo o país; estabeleceram-se tribunais seculares; criou-se um bilhete de identidade. As mudanças foram pensadas em Cabul, e aplicadas a partir da capital. Em resposta, os líderes tribais e religiosos, consideravelmente mais conservadores, ignorados durante a mudança social abrupta, derrubaram o regime com uma sequência rápida de revoltas armadas, e reverteram as mudanças.
É nesta instabilidade, de avanços e recuos, que se cristalizam algumas das profundas desigualdades que afligem o povo afegão. Olhando para as questões de género no presente, 28% das mulheres afegãs são casadas antes de fazerem 18 anos. Hoje, 46% das mulheres relatam ter sofrido de violência física e sexual às mãos do marido no último ano. É estatisticamente mais provável que uma mulher afegã passe fome do que um homem, que esteja desempregada, que nunca tenha a oportunidade de dirigir uma empresa, ou chegar a um cargo político. A taxa de literacia entre mulheres é de 29,8%. Entre os homens, 43%.
Quando Mohammed Zahir Shah, último rei do Afeganistão, reiniciou a liberalização do país, com a constituição de 1964, tinha como pilar do processo a manutenção da independência e soberania do país, o desenvolvimento do nacionalismo afegão. A queda da monarquia em 73, seguida da queda da república em 78, lançaria o país no sentido contrário. O regime comunista de partido único estabelecido por Nur Muhammad Taraki, promoveu reformas abrangentes, incluindo o estabelecimento da igualdade de género na lei, e a redistribuição de terrenos agrícolas. Muito deste desenvolvimento, como no início do século, foi projetado a partir de Cabul, e centrado em Cabul.
O Afeganistão rural não andou ao mesmo ritmo: os líderes tribais desencadearam uma guerra civil. Desta vez, a União Soviética interveio em grande escala, primeiro apoiando a defesa do regime, e depois promovendo um golpe no seio do Partido Comunista Afegão, e invadindo o país, mantendo a doutrina de Brezhnev. O conflito, tornado num palco da Guerra Fria, entre Estados Unidos da América e URRS, terminaria formalmente em 1992, com a vitória dos guerrilheiros mujahideen, apoiados pelos EUA. Até dois milhões de pessoas morreram, e 6 milhões tornaram-se refugiadas. Da guerra civil que se seguiu, emergiu o primeiro regime dos Taliban, e um país fraturado e altamente militarizado por décadas de guerra: as alavancas do poder passaram de líderes religiosos e tribais para senhores de guerra.
Entre 1996 e 2001, com o reconhecimento internacional de apenas três países (Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos) os Taliban reverteram as reformas comunistas, e estabeleceram uma teocracia mais rígida até do que a monarquia Musahiban. Atualmente, mais de metade da população afegã, 23 milhões de pessoas, pode passar fome severa. É um aumento de 37% desde abril de 2021. Nos anos 90, quando os talibã queimavam terrenos férteis para controlar rebeliões internas, as Nações Unidas afirmavam que se tratava de uma estratégia política propositada para manter o poder. Documentaram-se mais de uma dezena de massacres de civis neste período, levados a cabo pelos Taliban, tropas paquistanesas, e organizações terroristas que beneficiavam de apoio estatal.
A invasão norte-americana do Afeganistão em 2001 derrubou o regime Taliban. Garantiu também que por vinte anos se mantinham no limbo uma nação, sem responder às profundas desigualdades internas – centrando os programas de desenvolvimento económico nas zonas urbanas – nem criar confiança nas instituições democráticas, que nunca viram um período prolongado de funcionamento regular no país. Inclua-se aqui a liberdade de imprensa: sob ocupação dos EUA, o Afeganistão manteve-se como um dos países do mundo em que mais se matam jornalistas. Após o regresso dos Taliban ao poder, em 2021, regressou abertamente a censura.
Isolados das instituições financeiras globais, sem acesso a reservas monetárias no estrangeiro, e com uma economia rural por modernizar, os Taliban impõem o seu novo regime a um país pobre e desigual, que importa 80% da sua eletricidade e até 40% do trigo que consome.
E o padrão, repete-se: no Paquistão, reúnem-se as superpotências da atualidade, EUA, Rússia e China, para discutir o futuro do Afeganistão sem haver afegãos à mesa. Dentro do país, os poderes regionais agitam-se perante a memória da guerra civil. E todos os dias, milhares de afegãos fogem. E milhares são deportados, e devolvidos ao regime.
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Este é o primeiro episódio escrito, narrado e interpretado em língua gestual no âmbito do projeto Observatório. Documentar a Urgência.
O texto foi escrito pelo Nuno Viegas e narrado pela Margarida David Cardoso. O som foi editado pelo Bernardo Afonso.
A interpretação em língua gestual foi feita pela Catarina Pereira.
O vídeo foi compilado pelo Pedro Amaro Santos.
A música foi comprada na plataforma: epidemicsound.com
A iniciativa é da MEERU | Abrir Caminho, apoiada pelo IPDJ - Instituto Português do Desporto e Juventude, I.P.